segunda-feira, outubro 03, 2011

GUSTAVO LOYOLA - Lendas urbanas


Lendas urbanas
 GUSTAVO LOYOLA
VALOR ECONÔMICO - 03/10/11

Uma das mais repetidas e surradas frases sobre a política monetária no Brasil é que os juros altos são consequência direta de um pérfido conluio entre o sistema financeiro e o Banco Central (BC), do qual são vítimas inocentes os participantes da chamada "economia real". Obviamente, sendo verdadeira tal afirmação, a queda dos juros seria apenas uma questão de se colocar no BC pessoas que não tivessem tido quaisquer vínculos com o mercado financeiro.

Para os que acreditam nesta lenda urbana, a inesperada derrubada dos juros pelo BC na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) foi interpretada como um real grito de independência da instituição em relação ao mercado financeiro, cujas apostas naquela oportunidade concentravam-se na manutenção da taxa. Trata-se de rematada tolice que, no mínimo, demonstra total ignorância sobre o funcionamento do regime de metas para inflação. É no mínimo risível a ideia de que a prova da independência do BC estaria na sua capacidade de surpreender o mercado financeiro.

Por outro lado, é ingênuo acreditar que nessas surpresas não há ganhadores no mercado, mas apenas perdedores. Pior ainda é crer que o mercado ganha quando os juros sobem e perde quando caem. Até por uma questão de aritmética, há sempre perdedores e ganhadores, quando os juros se movimentam numa direção ou noutra.

O regime de metas para inflação exige transparência na relação entre o Banco Central e os agentes de mercado. Da falta de transparência é que surge a promiscuidade entre o BC e o mercado. A divulgação em atas e em relatórios das percepções e análises da autoridade monetária sobre a conjuntura econômica e a coleta por esta da opinião dos agentes de mercado - integrantes ou não do mercado financeiro - premia a transparência e não a promiscuidade.

É fato conhecido por qualquer primeiranista em finanças que há maior possibilidade de ganhos financeiros no uso de informações privadas do que de informações públicas. Daí, por exemplo, as preocupações com o uso de informações privilegiadas no mercado de capitais, que possibilitariam ganhos indevidos para alguns participantes do mercado em detrimento dos demais. Um banco central previsível para todos os agentes de mercado enseja menor possibilidade de ganhos do que um BC sistematicamente surpreendente. O regime de metas para inflação pressupõe que o Banco Central aja reduzindo as assimetrias informacionais e coordenando as expectativas dos agentes econômicos, sejam eles do mercado financeiro ou não.

Aqueles que creem em relações promíscuas entre o BC e o mercado financeiro, no contexto do regime de metas para inflação, se abespinham com o fato de a autoridade monetária levar em consideração, em suas decisões, as expectativas de inflação e de taxas de juros futuras formadas no mercado. O erro aqui é fundamentalmente um erro de inversão de causalidade. O mercado não forma suas expectativas a partir do nada. Num regime de metas para inflação minimamente funcional, é a autoridade monetária que influencia as expectativas de inflação do mercado e os juros futuros, e não o oposto. Por sua vez, um BC cujas ações sistematicamente surpreendem os agentes de mercado deixa de ter seguidores, pela absoluta dificuldade de se prever seus movimentos futuros.

Acreditar e escrever, como o fez um professor de economia, que o Banco Central, desde que implementado o regime de metas para inflação em 1999, vem seguindo cegamente o mercado, por ter tido em sua diretoria "funcionários de bancos privados" não somente é ofensa improcedente e gratuita, como também denota absoluto e lastimável desconhecimento factual do funcionamento da política monetária nos últimos anos. É claro que o BC, nos 12 anos desde a implantação do regime, cometeu equívocos em várias situações, tanto em movimentos de alta quanto em movimentos de baixa de juros.

É óbvio também que há espaço para melhorias no funcionamento do regime de metas, mormente no que diz respeito à fixação de metas para o ano-calendário e não para um período móvel (de 12 a 24 meses) à frente. Porém, tais imperfeições e erros não fazem do nosso regime de metas um "arremedo". Se assim fosse, a inflação não teria sido mantida em níveis razoáveis nos últimos 12 anos, a despeito dos vários choques domésticos e externos sofridos pela economia brasileira neste período. Aliás, o não reconhecimento dos méritos do BC no controle da inflação me faz acreditar que as diatribes contra os profissionais que ocuparam recentemente as diretorias da instituição talvez se originem de alguma nostalgia dos "bons" e velhos tempos de hiperinflação.

A decisão tomada pelo BC na última reunião do Copom não necessita de defesa baseada em lendas urbanas e preconceitos. Há argumentos técnicos - como os encontrados na ata da reunião do Comitê - que servem bem melhor a este propósito. As lendas pertencem ao mundo dos ficcionistas e lá devem permanecer.

Gustavo Loyola doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.

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