segunda-feira, março 21, 2011

MARIA INÊS DOLCI

Lei do mais forte no consumo
MARIA INÊS DOLCI
FOLHA DE SÃO PAULO - 21/03/11


Nós sabemos, é claro, que parte dos juízes sempre fica do lado das grandes empresas em suas sentenças

LEGISLAR PARA solucionar problemas, conflitos e fraudes é um hábito brasileiro. A velha piada traduz bem isso: um deputado, ao ouvir a argumentação de que determinada situação decorreria da lei da oferta e da procura, se propôs a revogá-la.
Toda lei em prol dos direitos dos cidadãos é positiva, mas, sem coordenação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ela perde parte ou todo seu efeito.
Alguém, por exemplo, encontra facilmente remédios fracionados na farmácia mais próxima?
Se conseguir, parabéns, porque a maioria compra mais remédios do que necessita, pois não há como adquirir a quantidade exata prescrita pelo médico.
Dos medicamentos para as reclamações: a regulamentação dos Serviços de Atendimento ao Consumidor (SAC) completou dois anos.
Provocou grande expectativa, fez com que muitas empresas investissem para cumprir as novas regras, mas, até agora, nenhuma multa foi paga. Se as infrações não custam nada, os SACs continuam atendendo mal.
Nós sabemos, é claro, que parte dos juízes sempre fica do lado das grandes empresas em suas sentenças, transformando boas leis em boas intenções, daquelas que enchem o inferno e nossa paciência.
No caso da entrega de produtos em dia e período determinado, da lavra do governo do Estado de São Paulo, a obrigação gerou uma retaliação, pois as lojas passaram a cobrar taxas para cumprir o que determina a legislação.
Outra lei paulista, que permite cadastrar os números de telefones das pessoas que não queiram receber propostas de venda de produtos e serviços por telemarketing, é ignorada pelos fornecedores.
Assim como a troca de veículos automotivos com defeito, se não forem consertados em 30 dias. Para que essa determinação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) seja cumprida, o proprietário tem de mover ação judicial. Que, como já ressaltamos, não raro resulta em reafirmação da burla ao CDC.
Como ocorre com as inúmeras leis municipais para regular o tempo de espera em filas bancárias no Brasil. Os bancos às vezes são multados, já houve agências lacradas, mas os correntistas continuam mofando nas filas.
Tristes exemplos são os preços diferenciados para pagamento com cartão de crédito, dinheiro em espécie e cheques. Sob a alegação de altas taxas pagas às operadoras de cartões de crédito, as lojas cometem a infração legal sob o disfarce de desconto para quem não paga com cartão.
O pior é que esses artifícios contra o que foi votado, aprovado e sancionado, lamentavelmente, às vezes ocorrem com o beneplácito de quem deveria equilibrar o jogo entre consumidor e empresas, as agências reguladoras.
É dessa forma que a Anatel fecha os olhos à cobrança do ponto extra em TV por assinatura. Para enganar o consumidor, as empresas só tiveram que taxar manutenção do ponto extra, aluguel de decodificador etc.
Assim como os contratos abusivos na prestação de serviços de acesso à banda larga não mereceram, até agora, qualquer sanção da agência. As operadoras simplesmente não se comprometem a entregar a velocidade adquirida (e paga) pelo consumidor.
Foi assim, também, que a Aneel, que regula a energia elétrica, olhou para o lado enquanto os brasileiros pagavam a mais nas contas de luz. Quando isso foi descoberto e denunciado por esta Folha, responsáveis pela agência disseram que o ressarcimento do valor pago a mais, ou até a compensação em futuras contas, seria impossível.
Definitivamente, embora o CDC seja um raro avanço nas relações de consumo no Brasil, a lei do mais forte ainda pune milhões de brasileiros, diariamente, por omissão ou conivência das autoridades.
Cabe aos consumidores e às entidades públicas e privadas de defesa dos direitos dos cidadãos agir rapidamente, de preferência em conjunto, para mudar esse vergonhoso cenário.
Não foi e nunca será fácil, mas é o que nos resta, nessa luta da ostra contra os rochedos e o mar.


MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores.

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