Só preso
REVISTA VEJA - SP
IVAN ANGELO
Já faz tempo, convivi com um desses artistas que surfam no limite entre a temeridade e a rebeldia, entre o destruir-se e o conseguir escapar. Augusto acabou morto com trinta punhaladas por um amante psicopata. Mas não é disso que eu queria falar, e sim de pessoas, como ele, que prejudicam seu talento com um talento maior ainda para a dispersão. Não cumprem prazos. É o compositor que não entrega a partitura, o pintor que não apronta a exposição, o arquiteto que não finaliza o projeto, o ator que não decora o texto.
Quem se lembrou dele e do caso foi minha amiga Angel Vianna. Augusto não entregava nunca os desenhos para o cenário e figurinos do balé 'A Donzela e o Mito' , que o marido dela, Klauss Vianna, estava criando, inspirado no romance 'O Amanuense Belmiro', de Cyro dos Anjos. O coreógrafo chegara a um ponto em que precisava do projeto para integrar os movimentos ao cenário. A data da estreia se aproximava e o cenógrafo só queria saber de botequim, papo, festas e desaparecimentos. Não adiantavam cobranças, apelos, ameaças — até que minha amiga se aproveitou de uma visita dele à escola de dança e o trancou na sala:
— Só sai daí quando entregar tudo.
Pela grade da janela ele pediu papel, tintas, lápis, pincéis, canetas — e uma bebida.
— Bebida, nem pensar. Quando ficar pronto a gente comemora.
Tiveram motivo para brindes. Foi dos melhores trabalhos dele.
Vejam as coincidências. No mesmíssimo dia dessa lembrança, um médico me contou sua história de paciência e impaciência com um marceneiro.
O profissional chegou recomendado: um artista. Gostou dele, do preço, do prazo e das condições de pagamento. A encomenda, uma estante com painel e gavetas, para home theater; o prazo, um mês.
Quarenta dias depois — e não trinta —, no fim da tarde, o profissional trouxe as partes do móvel, faltando ajustes, acabamento, montagem e limpeza. Recebeu o segundo pagamento e ficou de voltar pela manhã. O doutor, animado, comprou televisão nova para assistir à Copa do Mundo. O home theater chegou no dia seguinte; o marceneiro, não.
Telefonou, cobrou, ouviu promessas de amanhã sem falta. O homem apareceu e o doutor foi para o consultório, ainda animado. Voltou, o serviço avançara apenas 1 centímetro. Ligou e: “Amanhã tou aí, doutor”. De fato esteve, e o serviço andou mais 1 centímetro.
O que está acontecendo? — intrigava-se o doutor. Soube pela empregada que o homem trabalhava meia hora e ia embora. Suspeitou que ele estivesse tocando outro serviço. Reclamou, cobrou, deu prazo, ameaçou — e o serviço andou mais 20 centímetros. Até que descobriu: o marceneiro bebia. Largava o serviço e ia para o botequim, não voltava mais.
Quando o homem chegou no dia seguinte, dizendo ressabiado “hoje eu termino”, o médico pensou “e termina mesmo”. Botou-o para dentro da sala e trancou as portas.
— Só sai daí quando entregar o serviço. Ou morto.
A história terminou bem entre os dois. Assistiram juntos à estreia do Brasil na Copa.
Isso não é de hoje. Em 1819, o viajante francês Auguste de Sainte-Hilaire precisou de um “carpinteiro” que lhe fizesse umas dez canastras para continuar suas viagens pelo Brasil. Estava em São Paulo e já havia sido enrolado por dois trabalhadores. Foi a regra que encontrou aqui, conforme relata no livro 'Viagens às Províncias de São Paulo e Santa Catarina': “Era preciso depois mandar 100 vezes a casa do carpinteiro, ameaçá-lo, e em geral nada se conseguia”.
No dia em que havia tentado mais uma vez o cumprimento do serviço, já com um segundo artesão, o escritor francês foi jantar com o governador da província no palácio e contou-lhe o caso, não como queixa, apenas para comentar que estava próxima a estação das chuvas e temia o retardo da viagem. O governador riu-se dele, observou que o viajante andava já havia dois anos pelo Brasil e deveria saber como resolver essas coisas. Completou: “Deveria ter falado comigo”. Mandou botar um soldado na porta do carpinteiro, com ameaça de prisão, e só assim as canastras foram entregues ao ilustre viajante.
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