domingo, novembro 29, 2009

JOÃO UBALDO RIBEIRO

Notícia da madrugada

O GLOBO 29/11/09


Sempre achei chique acordar tarde. Vai ver que, quando eu era menino, me convenci de que acordar tarde era coisa para príncipes e princesas, ou então para artistas de Hollywood, os quais, por sinal, saíam da cama já de roupão, barbeados, penteados e provocando gritinhos e outras manifestações quase indecorosas, por parte das senhorinhas daquele tempo. Uma das primeiras iniciativas que tomei, depois que casei e saí da casa dos pais, foi daí em diante acordar tarde como muitos amigos meus do famoso Sul do País, ou seja Rio de Janeiro para baixo. Não deu certo.

Tenho uma comadre muito inteligente, que diz que tudo é trauma de infância. Deve ser verdade e, porque meu pai considerava qualquer pessoa que acordasse depois da cinco um sibarita à beira da perversão e ficava fazendo barulho pela casa toda, até que todo mundo acordasse. Uma vez, escandalizado e alarmado porque eram dez horas da manhã e eu não tinha despertado ainda, ele pegou um regador e molhou minha cara, como se eu fosse um pé de alface (dispenso gracinhas quanto a esta última observação).

— Degenerado! — bradou ele, enquanto eu sacudia a cabeça como um cachorro molhado. — Dissoluto!

Hoje mantenho o único regador da casa a distância do quarto. Não creio que seja tão degenerado assim e muito menos dissoluto, mas não se deve faci-litar com essas coisas. E trauma de infância é trauma de infância, razão por que, quando em Itaparica, costumo estar no mercado antes de o sol nascer, na companhia dos pescadores, dos peixeiros e, embora só ocasionalmente, dos fantasmas de meu pai e meu avô.

Agora distante deles e da ilha a maior parte do tempo, continuo suspeitando de degenerescência insidiosa entrando pelos ossos, sempre que saio da cama depois do horário prescrito pelos hábitos lá de casa. E assim, receio que não tão lépido quanto aos vint’anos, mas ainda dando para o gasto, eis-me caminhando na direção da banca de Salvatore, que outro dia andou espalhando pelo bairro que eu nunca mais apareci, desconfiava ele que por traição à velha freguesia e à não menos velha camaradagem.

Tranquilizei-o quanto a isso, comentamos com algum ceticismo a atual conjuntura, despedimo-nos efusivamente e eu me dirigi a parada seguinte, a da padaria. Sempre achei bonita a imagem do pai de família levando o pão recém-saído do forno para dentro de casa — o sagrado receio do lar, no ver de alguns. Pego o pão, começo a marcha de volta, mas o dia está bonito demais para ter seu começo desperdiçado. Sigo para apreciar o restinho de madrugada em frente ao mar, rever talvez algum velho companheiro de calçadão. Meu jamais esquecido capenguinha, estará ele por lá, cumprindo sua missão vingadora e humilhando alguma outra vítima de sua alta velocidade?

Olho em torno, não o vejo. Não é impossível que se apresente ainda mais façanhudo que antes, pode ser que esteja recalcado por o terem rejeitado como competição desigual, ou algo assim, nos Jogos Paraolímpicos. Mas desta vez não está à vista. Aspiro o ar marinho, contemplo o céu azul e me preparo para finalmente voltar, quando vem de lá quem senão meu amigo Agostinho? No vigoroso verdor de seus sessentinha, sessentinha e pouco, musculatura de 59 com certeza, já está acabando sua corrida diária. Lindo dia, tudo bem, batimentos numa boa, tudo bem, nenhuma novidade, graças a Deus.

— Aliás, minto — disse Agostinho. — Tem novidade, sim. O Lupércio já está recuperado, mas o médico da emergência disse que ele hoje podia estar numa situação igual à de um ovo cozido. De ovo cozido não sai pinto e dele também não ia mais sair. Não ia sair mais nada, aliás, ele estaria na mesmíssima situação que o ovo cozido, mortinho.

— Não entendi nada, Agostinho, eu nem sabia que o Lupércio tinha passado mal.

— Ah, eu pensei que você sabia, todo mundo lá sabia. Ele perdeu os isqueiros todos da casa dele e aí partiu para acender o cigarro no micro-ondas.

— Mas não pode, tem uma trava de segurança, não funciona aberto.

— Você já tentou dissuadir o Lupércio de alguma coisa, quando ele já está com umas duas no juízo? E ele é sergipano, eu aprendi com ele que o sergipano é assim. Quando mete uma coisa na cabeça, não tem santo que tire. O médico explicou que o micro-ondas não produz calor, o que ele faz é agitar as moléculas de água contidas no treco que está lá dentro e aí esse treco assa ou cozinha. Então pelo menos as bochechas do Lutércio iam ficar iguais a um pimentão recheado.

— Mas ele não chegou a enfiar a cara no microondas ligado, não, chegou? Claro que o médico tem razão, as bochechas dele iam ser cozidas vivas, eu fico arrepiado só em pensar.

— Não, ele chegou perto, mas aberto o forno não funciona mesmo. Isso eu sei e o Lupércio também sabe, mas ele aí encasquetou porque diz que detesta qualquer objeto recalcitrante e já esmigalhou um relógio caro porque um ponteiro não parava onde ele queria, e aí partiu para o forno com uma chave de fenda em riste. Sorte o filho dele estar lá para segurar.

— Mas que maluquice, só mesmo o Lupércio. É melhor até avisar ao pessoal daquela mesa dos botafoguenses que ele lidera, eles acham ótimo tudo o que o Lupércio faz.

— É negócio de botafoguense, botafoguense acredita até em lobisomem. Mas esse perigo eu já disse a eles que eles não correm, naquela mesa ninguém tem água no organismo.

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