O Estado de S.Paulo - 13/05
Em razão dos possíveis desdobramentos nos campos militar, político e econômico, a crise na Ucrânia tem gerado forte preocupação. Ao confrontar a Rússia, EUA e Europa ressuscitam considerações geopolíticas que gostariam de deixar para trás. Consumada a incorporação da Crimeia ao território russo, o mundo espera o desfecho das disputas pelos territórios do leste da Ucrânia, na fronteira com a Rússia, onde se concentra a maioria da população de origem e de língua russas.
Quais os interesses do Brasil na relação com a Ucrânia? Poucos talvez possam identificar assuntos em comum com país tão distante.
O Brasil no governo Lula se associou à Ucrânia para a cessão de espaço para lançamento de satélites comerciais do Centro de Lançamento de Satélites em Alcântara. Para isso, foi criada a empresa mista Alcântara Cyclone Space (ACS), formada em partes iguais, que já consumiu US$ 918 milhões do lado brasileiro, tendo sido metade aportada em meados de 2013, sob a forma de aumento de capital, sem nenhum resultado concreto até aqui. A ideia era aproveitar o programa ucraniano para, se tudo desse certo, desenvolver uma indústria voltada para lançamentos no Brasil. Toda essa negociação com a Ucrânia está cercada de circunstâncias que mostram a maneira descoordenada como muitos projetos de grande relevância estratégica foram tratados nos últimos anos.
O programa espacial brasileiro de desenvolvimento de Veículos Lançadores de Satélites (VLS) e de aproveitamento comercial da Base de Alcântara colocaria o Brasil no mercado global, dominado em mais de 85% por lançamentos de satélites de comunicação de empresas norte-americanas. Para viabilizar a entrada do Brasil nesse mercado, o governo FHC negociou acordo de salvaguarda tecnológica com os EUA. Por questões ideológicas, o PT na oposição e, depois, no governo ficou contra o acordo que, paralisado no Congresso, foi abandonado. O governo Lula, no entanto, para viabilizar a cooperação com a Ucrânia, teve de assinar um acordo de salvaguardas tecnológicas com o governo de Kiev. O acordo com a Ucrânia, traduzido quase literalmente do firmado com os EUA, foi rapidamente aprovado pelo Congresso com o apoio entusiasmado do PT. Chegou-se mesmo a discutir um segundo acordo, que atenuasse cláusulas draconianas que restringiam o acesso das autoridades brasileiras aos equipamentos ucranianos e ampliasse a cooperação para o desenvolvimento conjunto de um novo VLS (Cyclone V).
Soube, no ano passado, que a Ucrânia havia feito gestões junto do governo de Washington para que o acordo de salvaguarda tecnológica com o Brasil fosse retomado, porque o foguete ucraniano incorpora peças e componentes americanos. Assim, o VLS Cyclone só poderia ser lançado de Alcântara se o acordo Brasil-EUA estivesse em vigor.
Essa comédia de erros está atrasando por mais de 15 anos o programa brasileiro de utilização comercial da Base de Alcântara. Será que as autoridades brasileiras não sabiam que o acordo com os EUA era indispensável para levar adiante o projeto com a Ucrânia?
O quiproquó não termina aí. A empresa que teoricamente produziria o foguete lançador dos satélites comerciais de Alcântara está localizada na área industrial da Ucrânia, exatamente no território agora conflagrado pela presença de população russa, transferida para a região para operar o complexo industrial militar que Moscou havia criado naquele país, então parte da URSS. O que acontecerá se esse território for incorporado à Rússia?
Além disso, a Ucrânia, sem condições de fazer os aportes financeiros necessários, pela precária situação de sua economia, contribuiu para reduzir o projeto a um sonho de uma noite de verão. A negociação com a Ucrânia teve clara motivação ideológica para evitar a dependência dos EUA. A maneira desastrada como todo o processo foi operado é mais um exemplo de um equívoco cometido por considerações político-partidárias. Os investimentos feitos pelo governo brasileiro não serão recuperados e o caos doméstico ucraniano inviabiliza qualquer esforço para a retomada do projeto.
O acordo de salvaguarda tecnológica com os EUA, depois da visita do presidente Barack Obama ao Brasil em 2011, estava sofrendo modificações para ser apresentado às autoridades norte-americanas. A negociação do acordo, contudo, está paralisada, como tudo o que é realmente importante na relação com os EUA. A decisão da presidente Dilma Rousseff de só normalizar as relações bilaterais depois de um eventual pedido de desculpas de Obama pelo monitoramento indevido da Agência Nacional de Segurança (NSA) dificulta o desenlace da crise entre os dois países. Como o pedido dificilmente será atendido, este e outros temas de interesse brasileiro dormem nos escaninhos da burocracia itamaratiana.
Críticos cobram um posicionamento da política externa, outrora tão ativa e altiva, em relação aos graves acontecimentos que culminaram com a anexação da Crimeia à Rússia e com os distúrbios em diversas cidades ucranianas.
A paralisia da diplomacia brasileira pode ser explicada por um conjunto de fatores: o Brasil ser membro do Brics, hoje um bloco institucionalizado, com reuniões presidenciais (a próxima ocorrerá em Fortaleza, em julho) e ministeriais todos os anos; pela dificuldade de lidar com o imbróglio em que nos metemos com o acordo de cooperação no Centro de Lançamento de Alcântara; e pela deliberada política do governo Dilma de encolhimento da política externa e da não participação do Brasil na cena internacional.
Fica cada vez mais evidente a necessidade de uma nova política externa que restaure a influência do Itamaraty, para evitar situações como a da Ucrânia, e restabeleça a voz e a presença do Brasil no exterior.
Um comentário:
A diplomacia petista é uma lástima, mas a defendida por este elemento é a dos pés descalços... relembre um tal de Lafer...
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