domingo, fevereiro 09, 2014

Power - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 09/02

Há anos deixo de ir à minha cidade natal no dia de Iemanjá, o que não quer dizer que perco de todo a festa


No 2 de fevereiro vi as duas festas importantes do dia: o presente de Iemanjá no Rio Vermelho e o encerramento da festa da Purificação em Santo Amaro. A de Iemanjá vi em sua inteireza, mas de longe. Minha casa é no Rio Vermelho, e da varanda dá para ver os barcos que se arrumam em frente à Igreja de Santana e partem para o local em alto-mar onde o presente será jogado, não sem antes virem margeando a costa para virarem em ângulo reto em direção ao horizonte. Digo que eles vêm porque é justamente à frente da minha varanda que eles mudam de rumo. Antigamente eram sobretudo velas que coalhavam o mar. Hoje são lanchas e escunas. Quase todas brancas, a exceção sendo a grande embarcação cinzenta da Capitania dos Portos. Fazendo espuma e deixando rastro, todas seguem o saveirinho que leva o presente. O povo que vi de longe se distribuía pelas rochas que pontuam a passagem da praia da Paciência para a de Santana. O Zárabe, aquele rio veloz de testosterona, fez ouvir, primeiro na madrugada, depois na tarde do presente, suas darbukas, seus pandeirões e sua pandeiretas, Carlinhos Brown à frente. A decisão de ir a Santo Amaro no início da noite me obrigou a admitir não ir até a areia ou o asfalto: duas festas de rua no mesmo dia é demais para um velho como eu.

Há anos deixo de ir à minha cidade natal no dia da padroeira. O que não quer dizer que perco de todo a festa. A partir do dia 23 de janeiro a Praça da Purificação se ilumina e se enche de gente. As novenas. Sem falar no domingo anterior ao 2 de fevereiro, quando se dá a Lavagem e a cidade é tomada por charangas e trios elétricos. Em geral, vou a uma ou duas noites de novena e sinto o gosto da festa. Reservo o dia 2 para Iemanjá em Salvador. Este ano precisei estar no Rio até o dia 31 de janeiro. Tentei me resignar a nada ver dos festejos em Santo Amaro. Até que me dei conta de que poderia assistir a Iemanjá, que é festa diurna (embora a celebração nas barracas de bebidas siga pela noite adentro), e participar da Purificação, que é noturna (embora a procissão comece de tarde). Deu certo.

Cheguei a Santo Amaro e fui logo à igreja da Purificação (eu temia que ela se fechasse). Gostei de ter entrado ali. Os azulejos, o teto tipo barroco, as pessoas religiosas do Recôncavo. Mas fiquei intoxicado de beleza foi na praça. O parque de diversões cheio de crianças, o chafariz rodeado de grupos de samba de roda, de burrinha, de bumba-meu-boi. Sobretudo as pessoas conversando nos bancos, nos passeios, na alamedas. Minha gente.

Os grupos de adolescentes cheios de energia expressa em vaidade ingênua. Minha vida. A maioria das pessoas é escura. Os graus de mestiçagem em cada grupo particular e na multidão em geral fazem pensar. Em sete amigas, três são pretas; duas, mulatas; e as duas restantes são uma morena de cabelo liso e uma branca. Num de seis, as seis são pretas. Num outro, de cinco, três são brancas (isto é: uma morena, uma alourada de cabelo quase crespo e uma caucasiana) e duas são pretas (uma seria mulata e a outra, negra retinta). Combinações semelhantes se dão entre grupos de rapazes, de senhoras idosas e de casais adultos. Essa observação estatística dos traços raciais se dá somente na minha cabeça escolada. Aparentemente, entre essas pessoas há apenas amizade, interesses comuns e erotismo. Digo aparentemente porque, embora eu tenha sido uma dessas pessoas que rodavam a praça com amigos de todas as cores sem contar quantos de cada cor compunham seu grupo ou o conjunto dos grupos que circulavam, eu me lembro de conhecer a consciência do quão rebaixado era, em tese, o negro. Os comentários de humor racista tampouco eram inexistentes. Mas a configuração que ainda posso ver na praça da Purificação — e a naturalidade não pensada em que ela é vivida — grita algo contra a simplificação que, desde os anos 1970, adotamos para pensar a questão racial no Brasil. Além da emoção indescritível que me causava a visão de cenas tão conhecidas para mim, impunha-se a constatação de que é difícil enfrentar o assunto com franqueza e justiça. Difícil significa que temos de atentar para muitas feições surpreendentes que o tema toma. A mera adoção do modelo incentivado pelos cinco olhos é simplesmente inaceitável. Tanto quanto manter a hipocrisia que tão ardentemente desejei ver superada. Vendo os cabelos de Lourdinha, filha de Dona Morena, ao natural, saída ela do banho e sem passar o ferro que os esticava, sonhei, criança, com a figura de Angela Davis. Observando a paz de Gil em 1963, desejei vê-lo problematizando a questão do negro entre nós. Ter vivido para ver cabelo black power e ouvir Gil falar sobre racismo é o que me dá esperança.

Nenhum comentário: