FOLHA DE SP - 15/08
Na história de Lota e Elizabeth, o gênero das amantes é bem menos importante do que o amor
Estreia amanhã "Flores Raras", de Bruno Barreto. O filme (baseado no livro "Flores Raras e Banalíssimas", de Carmen L. Oliveira --nova edição pela Rocco) conta a história dos 17 anos (mais ou menos) que Elizabeth Bishop passou no Brasil.
Na sua chegada ao porto de Santos, em 1951, Bishop já era uma poeta reconhecida, "poet laureate" dos EUA. Nota: "poet laureate" é um cargo de poeta oficial nacional, que raramente me desapontou. Carol Ann Duffy, uma de minhas poetas preferidas, ainda é "poet laureate" do Reino Unido; Billy Collins e Louise Glück foram "poet laureate" dos Estados Unidos, sem contar Robert Frost e Joseph Brodsky. Aliás, eu descobri Collins e Duffy quando se tornaram "poet laureate" de seus países.
Enfim, Bishop estava circum-navegando a América do Sul; viajando, ela queria aliviar sua melancolia. Como Robert Lowell lhe diz lindamente no filme: ela procurava a "cura geográfica". Em Santos, a poeta desceu do barco com a ideia de passar uma semana ou duas visitando uma amiga, Mary Morse, que era então a companheira de Lota de Macedo Soares.
À primeira vista, o encontro de Elizabeth Bishop e Lota não foi muito promissor. Aos olhos de Lota, maravilhosamente interpretada ou inventada por uma inesquecível Glória Pires, Bishop devia parecer como uma chata, por grande poeta que fosse. E é provável que Bishop se assustasse pela presença expansiva de Lota. Agora, uma sugestão: é sempre bom desconfiar dos outros ou outras que seu parceiro ou parceira acha imediata e excessivamente desinteressantes.
De qualquer forma, o encontro de Elizabeth e Lota foi o começo de uma relação que é, para mim, um protótipo de história de amor que vale a pena. Alguns dirão que não acabou bem. Mas esse não é um argumento. O que importa mais é que, nos anos em que elas se amaram, cada uma delas deu o melhor de si: Bishop escreveu os poemas de "North and South" (que lhe valeram o prêmio Pulitzer), e Lota concebeu e realizou o aterro de Flamengo, no Rio de Janeiro.
É frequente que, num casamento, o cônjuge, por adorável que seja, apareça como alguém que limita nosso desejo --às vezes, ele, de fato, compete com nossa vida e domestica nossos sonhos. Esse não foi o caso de Elizabeth e Lota: cada uma potencializou o gênio da outra --essa é uma flor rara.
Detalhe crucial, "Flores Raras" não é um filme sobre um amor homossexual, simplesmente porque o fato de que se trata de duas mulheres é indiferente --o espectador não tem nem tempo nem disposição para aprovar ou para recriminar o amor de Elizabeth e Lota.
Talvez, na sociedade privilegiada e culta do Rio de Janeiro dos anos 1950-1960, pouco importasse que Lota e Elizabeth fossem duas mulheres. Não sei. O fato é que Bruno Barreto conseguiu contar a história de Lota e Elizabeth de tal forma que o gênero e a opção sexual das amantes é muito menos importante do que o amor entre elas.
Ontem, em São Paulo, no "Fronteiras do Pensamento", palestrou Anthony Appiah (professor em Princeton, autor de "O Código de Honra", Cia das Letras). Numa entrevista a Cassiano Elek Machado, na Folha de 10/8, Appiah menciona a revolução moral recente pela qual "há 20 anos, a maioria das pessoas (nos EUA) diria que a ideia do casamento gay é totalmente ridícula. Hoje, se você falar com jovens americanos, 70% deles vão defender sua aprovação".
Pois bem, "Flores Raras" não precisa caber num catálogo de "filmes homossexuais" porque cabe no dos grandes filmes de amor e porque já pertence a uma época em que a orientação sexual talvez seja, enfim, inessencial.
Não me lembro de um momento de minha vida (sequer a infância) em que a orientação sexual fosse, para mim, um fato relevante. Um pilar de minha educação moral foi minha avó, que era católica devota e moralmente preconceituosa, mas dotada de senso prático --se eu fosse homossexual, ela provavelmente se tornaria antipapal (talvez anglicana) na hora.
O outro pilar foi meu pai, para quem a própria ideia de "anormalidade" era uma bizarrice. Embora fosse especialista, tinha uma prática de médico de família: de manhã, ele visitava seus pacientes a domicílio. Quando eu estava de férias, ele pedia que eu o acompanhasse. Dizia que era para lhe fazer companhia. Suspeito que ele quisesse me ensinar a reconhecer meus semelhantes na diversidade do mundo, das casas, dos quartos e das vidas. Enfim, divago. Não perca "Flores Raras".
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