O Estado de S.Paulo - 02/06
O zagueiro Dante é baiano de Salvador. Saiu do Brasil com uns vinte anos e se foi pelo mundo. Não foi vendido por quantias fantásticas, não era ninguém quando se iniciava no Brasil; foi, na realidade, aventurar como tantos brasileiros que vêm no futebol uma das poucas possibilidades de ascensão social. Jogou na Europa em times sem expressão até que deu com os costados na Alemanha. Lá, pouco a pouco, foi se destacando e, finalmente, entrou para a elite do futebol mundial ao ser contratado pelo poderosíssimo Bayern de Munique.
A partir daí o Brasil acordou para esse seu filho distante e ignorado. Foi imediatamente convocado para a seleção brasileira, como é atualmente praxe, não importa qual o treinador esteja ocupando o cargo. Diga-se de passagem, que os treinadores que convocam tantos jogadores do exterior nunca concorrem, eles mesmos, com estrangeiros. Não ocorre a ninguém da CBF chamar um técnico de prestígio do futebol europeu. E sabemos que há muitos. Curioso, muito curioso.
Bem, voltando a Dante, começou a ser chamado e na sequência, aparentemente se tornou jogador imprescindível, da maior importância, a ponto de a CBF criar um caso com o Bayern de Munique, que não o queria ceder para o amistoso contra a Inglaterra, tendo uma final de Copa da Alemanha para disputar. Os treinadores do Brasil, Felipão e Parreira, num dado momento, passaram boa parte da responsabilidade de resolver o problema para o próprio jogador. Ele que pressionasse o Bayern para ser liberado. Liberado, aliás, para um jogo que, além de amistoso, pode não acontecer. Por uma daquelas vergonhosas e usuais trapalhadas de quem comanda o esporte e a política no Brasil, o local da partida foi considerado inadequado legalmente. Uma liminar o liberou e garante a partida, que, porém, uma outra liminar pode impedir de novo. Quem pode saber, no Brasil?
Nessas circunstâncias, Dante pode voltar para a Alemanha e ter de explicar a Karl-Heinz Rummenigge, seu diretor, que tudo foi apenas uma brincadeira e não houve Brasil x Inglaterra. Os alemães não são famosos pelo senso de humor e Dante teria de escolher cuidadosamente as palavras de suas justificativas. Mas, o Brasil é o país do jeitinho e tudo leva a crer que a partida será mesmo realizada. E Dante virá para jogar. Ele foi liberado, com o pessoal do Bayern rangendo os dentes.
Não sei se o jogador pressionou o clube para liberá-lo. O que importa é o pedido para que o fizesse. Na realidade, a pressão para que o fizesse. A ameaça, segundo o pessoal do Bayern, foi de que não voltaria jamais a vestir a camisa do Brasil. Essa ameaça e a atitude do jogador pedem um exame mais detido. Por que, em primeiro lugar, Dante precisa do Brasil? Para que vestir a camisa de um país cujas condições sociais e mesmo esportivas o obrigaram a emigrar? O que o Brasil fez por Dante? Deu-lhe instrução pública de qualidade? Provavelmente não. Deu-lhe condições de sustentar a si e a sua família? Provavelmente não. Então qual é o direito que o Brasil tem de exigir fidelidade e amor dessa pessoa? Nenhum, e possivelmente não teria nem um nem outro, não fossem os sonhos de infância.
Todo menino que joga bola sonha com a seleção. Todos se vêm vestindo a amarelinha, tão gloriosa, tão querida. É esse o sonho que permanece intacto dentro de cada jogador e que Dante dividiu com todos seus amigos de infância. É diante de todos os outrora meninos como ele, que Dante quer aparecer vestindo a amarelinha.
Essa é a ambição de menino que não sai nunca, que não morre nunca. É com isso que a CBF joga. Exige do Dante adulto que defenda uma pátria que não lhe deu nada, mas conta com o Dante criança, para cumprir essa tarefa. Usando as memórias, o mundo infantil que cada um carrega para sempre a CBF pede que esse jogador se indisponha com o clube que, esse sim, lhe dá tudo. É honesto um procedimento desses?
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