sexta-feira, junho 07, 2013

Sede de indignação - CRISTOVAM BUARQUE

GAZETA DO POVO - PR - 07/06

O presidente do Supremo Tribunal Federal diz em público que os partidos nada significam, que os políticos são oportunistas e deixa a entender que o maior poder na democracia, o Congresso Nacional, não funciona. E o povo aplaude. Não o vê como uma ameaça às instituições; ao contrário, comemora e amplia a admiração pelo ministro Joaquim Barbosa. A razão é simples: ele mostra indignação, exatamente o que falta na política brasileira.

Durante mais de quatro séculos, convivemos sem qualquer indignação diante do absurdo ético da escravidão, inclusive de antepassados do ministro. A escravidão era um fenômeno natural. Mesmo alguns humanistas que se pronunciavam sobre o assunto defendiam apenas melhor tratamento para os escravos, não a abolição da escravatura.

A ideia da abolição só começa a se espalhar quando seus defensores começam a passar o sentimento de indignação moral contra a escravidão. Enquanto os argumentos eram econômicos (o trabalho livre seria mais inteligente e produtivo) ou ideológicos (a escravidão não era condizente com o espírito da época), a abolição não era entendida, nem sentida, não indignava. Foi quando o discurso passou a ser ético, apresentando a escravidão como uma vergonha nacional, que o assunto passou a ter importância na sociedade até prevalecer enquanto reivindicação social.

Na Inglaterra aconteceu o mesmo: o grande abolicionista William Wilberforce reconheceu que a ideia da abolição só despertou consciências quando ele e seus companheiros de luta saíram do discurso lógico e começaram a mostrar como eram os navios negreiros, as condições de trabalho e vida dos escravos, levando para o Parlamento inglês vários depoimentos de ex-escravos. A abolição foi o resultado da força moral que surgiu da indignação.

Assim, também não adianta apenas argumentos lógicos para justificar a necessidade da abolição do analfabetismo – a escravidão do século 21; é preciso que os brasileiros sintam indignação com o fato de que, para abolir o analfabetismo, só precisamos de R$ 1,6 bilhão ao ano, por apenas quatro anos, de uma renda nacional de R$ 4,5 trilhões, empregando por dez horas semanais apenas 125 mil do atual 1,6 milhão de universitários que estudam com financiamento público.

Com o fim do analfabetismo, poderíamos colocar na frente de cada aeroporto que receberá os torcedores da Copa uma placa dizendo “Você está entrando em um território livre do analfabetismo”. São vergonhosos os nossos governantes, que não poderão fazer isso porque não agiram na hora certa para despertar o espírito nacional capaz de resolver esse problema.

Da mesma forma, não adianta muito dizer e mostrar que o Brasil não tem futuro, na economia ou sociedade, se não for capaz de colocar todas suas crianças em escolas com a máxima e mesma qualidade. Os argumentos lógicos fracassaram. Só argumentos morais, produtos da indignação, poderão salvar o Brasil.

Houve um tempo em que precisávamos de consciência; agora precisamos de raiva e vergonha. Por isso, um presidente do STF é capaz de sair de sua função, enfraquecer a independência dos três poderes ao denunciar os partidos, os congressistas e, portanto, o Congresso Nacional, e mesmo assim ser aplaudido. Esses aplausos não se justificam do ponto de vista lógico das instituições, mesmo sabendo que a declaração é verdadeira. Mas moralmente se explica: o povo está com sede de indignação.

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