O Estado de S.Paulo - 01/06
Creio ter sido o primeiro crítico a desconfiar que Alfred Hitchcock e Luis Buñuel eram almas irmãs, que seus filmes mantinham um intrigante diálogo estético e filosófico. Compartilhei essa suspeita com o mais antigo brasilianista de minha intimidade, Robert Stam, quando passamos juntos uma temporada em Berkeley, em 1971, e ele, passados alguns anos, desenvolveu um ensaio a respeito, incomparavelmente mais profundo que o melhor que eu poderia ter escrito.
Outras almas irmãs (noves fora os imitadores) Hitchcock ganharia nas décadas seguintes, nem todas críveis, nenhuma tão surpreendente quanto Vladimir Nabokov.
Em princípio, os dois só teriam em comum algumas coincidências biográficas. Nasceram em 1899, iniciaram suas respectivas carreiras na década de 1920, emigraram da Europa para a América quase ao mesmo tempo e lá se consagraram mundialmente, com o inestimável arrimo moral e profissional de suas respectivas mulheres. Ainda é pouco, convenhamos.
Ademais, se o cinema do primeiro nos remete, automaticamente, a Cornell Woolrich, Patricia Highsmith e a outros romancistas policiais de menor envergadura, a ficção do segundo estreitou seus laços cinematográficos com Stanley Kubrick, Tony Richardson, Jerzy Skolimowski, Rainer Werner Fassbinder, jamais com Hitchcock. Onde, então, os dois se cruzam?
Não é segredo que Hitchcock admirava Nabokov, e vice-versa. A trama de Lolita fascinara o cineasta, o humor negro (e seco) de O Terceiro Tiro deleitara o escritor. Conheceram-se por telefone, por iniciativa do cineasta, em meados da década de 1960. Decepcionado com a performance comercial de Marnie e decidido a voltar a dirigir um thriller de espionagem, Hitchcock pediu a Nabokov que o ajudasse a elaborar uma intriga que, afinal assumida pelo canadense Brian Moore, resultaria em Cortina Rasgada, com Paul Newman e Julie Andrews.
Em carta datada de 19 de novembro de 1964, o cineasta manifestou suas dúvidas sobre como a noiva de um suposto desertor americano deveria se comportar em plena Guerra Fria, se incondicionalmente a favor do noivo ou, a contragosto, da pátria. Junto enviou outra ideia, que não pudera desenvolver quando ainda dirigia filmes na Inglaterra, girando em torno de uma jovem que trocava uma longa permanência num convento suíço pela azáfama de um grande hotel internacional explorado por uma parentela de escroques. Alegando ignorar como os órgãos de espionagem americanos funcionam, Nabokov descartou a primeira sugestão, interessou-se pela segunda, exigiu total liberdade de criação (concedida por Hitchcock), mas pediu mais tempo para pensar no assunto do que o cineasta lhe podia conceder.
Na mesma carta-resposta, postada em 28 de novembro, Nabokov revelou ruminar, fazia tempo, uma intriga na contramão de Cortina Rasgada, explorando a vida infernal de um desertor soviético refugiado nos Estados Unidos, e, de lambujem, ofereceu a Hitchcock o esboço de uma promissora história de amor, decadência e ressentimento envolvendo um astronauta e uma estrela do show business, que tampouco medrou.
Os biógrafos dos dois costumam desprezar essa troca de cartas e ideias, por desconhecê-la ou minimizar, tolamente, sua importância. O cineasta e o escritor mantiveram contato, invariavelmente por telefone, até pelo menos o final dos anos 1960, quando Nabokov viu-se tentado a escrever o roteiro (adaptado) de Frenesi, que compromissos inadiáveis o impediram de levar adiante. Anthony Shaffer fez um ótimo trabalho, mas a hipótese de um script elaborado por Nabokov até hoje excita minha curiosidade.
"Quantos filmes intrincados, complexos e eletrizantes os dois não teriam feito de parceria?", perguntou-se num ensaio James A. Davidson, o primeiro e, que eu saiba, único crítico a especular sobre as afinidades menos supérfluas e exteriores entre Hitchcock e Nabokov, desde a influência que sobre os dois e suas obras exerceram Kafka e certos autores do século 19, como Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson, que ambos devoraram na juventude, até o pronunciado gosto por ludibriar espectadores e leitores, brincar com os gêneros (Fogo Pálido, de Nabokov, é uma paródia da literatura detetivesca como Psicose, uma paródia do filme de terror), e deleitar-se com autorreferências.
A estreia simultânea na América, em 1940 (Hitchcock com Rebeca, a Mulher Inesquecível, Nabokov com seu primeiro romance escrito em inglês, A Verdadeira Vida de Sebastian Knight), é detalhe perfunctório se comparado ao peso de Poe e Stevenson sobre os duplos hitchcockianos (Pacto Sinistro, O Homem Errado, Um Corpo Que Cai, Psicose, Intriga Internacional) e nabokovianos (Hermann e Felix em Despair, Quilty e Humbert Humbert em Lolita) e as bem-humoradas intromissões narcisistas dos autores em suas obras. Hitchcock, com raríssimas exceções, às escâncaras; Nabokov, mais sobriamente.
Os dois principais personagens de Fogo Pálido, John Shade e Charles Kinbote, têm muito a ver com o escritor, e o próprio assassinato de Shade por Jacob Gradus não disfarça sua semelhança com a morte do velho Vladimir, pai do autor, no exílio. A três parágrafos do final de Bend Sinister, seu primeiro romance escrito no país adotivo (ele e Hitchcock se naturalizaram americanos), Nabokov assume inopinadamente a narrativa na primeira pessoa depois da morte do protagonista, Adam Krug. Não sei se isso é mais ou menos significativo que as aparições físicas de Hitchcock e a intromissão do próprio Nabokov em Pnin, assumindo o posto acadêmico de seu epônimo anti-herói. Não sei nem preciso saber para aceitar a tese de que Hitchcock e Nabokov nasceram um para o outro.
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