O GLOBO - 06/06
Desde 2001, quando Erdogan fundou o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), a Turquia engajou-se num experimento histórico de vastas implicações
“Os que nomeiam esses eventos como a Primavera Turca não conhecem a Turquia”, exclamou o primeiro-ministro Recep Erdogan, enquanto as manifestações se espalhavam nacionalmente, a partir da Praça Taksim, no centro de Istambul. O espectro de uma outra praça — Tahir, no Cairo — atormentava Erdogan e animava os manifestantes. Taksim não é Tahir, mas as duas praças convergem, por vias diversas, à condição de símbolos de uma segunda primavera no Grande Oriente Médio. O que está em jogo é a oportunidade histórica da reforma do Islã, por meio da plena aceitação das liberdades públicas e individuais.
Na Praça Tahir, em fevereiro de 2011, o pêndulo se inclinou em definitivo quando os trabalhadores entraram em cena, precipitando a queda do ditador Hosni Mubarak. O levante da Praça Taksim começou pelas classes médias, como em Tahir, mas os trabalhadores ensaiaram uma greve geral já no quinto dia dos protestos. Taksim não é Tahir, por motivos políticos (o governo de Erdogan não é uma ditadura) e culturais (a Turquia não faz parte do mundo árabe). Contudo, Erdogan age como quem “não conhece a Turquia” — ou, ao menos, conhece apenas uma Turquia simplificada, que é islâmica, otomana e imperial.
A pátria ideológica e cultural de Erdogan é uma Turquia amputada dos noventa anos de história da república secular, europeísta, fundada por Kemal Ataturk. A fagulha da Primavera Árabe acendeu-se na palha seca de anos de depressão econômica. Na Turquia, pelo contrário, a revolta eclodiu após uma década de forte crescimento econômico. O motor original das manifestações foi um projeto de substituição do Parque Gezi por um complexo de edificações comerciais, culturais e religiosas, mas a revolta levantou voo quando a violenta repressão policial evidenciou uma desconexão política fundamental: nas ruas, os cidadãos estão dizendo que existe uma outra Turquia, cujos valores são desrespeitados pelo governo.
“Nós somos filhos de Ataturk”, dizem os cartazes de Taksim. Ataturk, o “pai dos turcos”, reinventou a Turquia como Estado-Nação, renunciando à visão imperial otomana. O plano de Erdogan para a área do Parque Gezi inclui a demolição do Centro Cultural Ataturk e a construção de um simulacro de um antigo quartel otomano. Na raiz da revolta, encontra-se a ampla oposição pública ao envolvimento da Turquia na guerra civil síria — ou seja, ao renascimento neo-otomano acalentado pelo governo. Mas isso não é tudo, nem o principal. Ataturk aboliu o califado, separou a escola da mesquita, conferiu às mulheres direitos iguais aos dos homens. Sob Erdogan, no alto funcionarismo público, mensagens não muito ocultas instruem as mulheres a se vestirem em padrões tradicionais, as escolas reintroduzem cursos corânicos, adverte-se contra o beijo em lugares públicos e uma nova lei restringe o comércio de bebidas alcoólicas. “Nos exames, surgem diversos itens ideológicos adaptados aos apoiadores do governo”, disse um estudante secundarista envolvido nos protestos de Taksim. A praça Taksim não é a Tahir original, mas parece-se com a segunda Tahir, onde as correntes seculares egípcias desafiam o tradicionalismo islâmico do governo da Irmandade Muçulmana.
Desde 2001, quando Erdogan fundou o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), a Turquia engajou-se num experimento histórico de vastas implicações. No novo partido, abrigaram-se correntes islâmicas oriundas dos estilhaços de partidos fundamentalistas condenados à ilegalidade, além das novas elites urbanas desencantadas com a corrupção do antigo partido dirigente nacionalista ancorado na herança de Ataturk. Ao longo de uma década de governo, o AKP utilizou os acordos da candidatura turca à União Europeia para quebrar a armadura do chamado “Estado Profundo”, o sistema de poder da cúpula militar kemalista, e introduzir uma coleção de reformas democráticas. Ironicamente, o partido de origens islâmicas deflagrou uma segunda “europeização” da Turquia.
Há dois anos, numa coletiva de imprensa, líderes partidários rejeitaram o adjetivo “islamista” convencionalmente associado ao AKP. Na ocasião, o ex-ministro da Educação Huseyin Çelik definiu-o como um “partido democrático conservador”, enfatizando que o conservadorismo “circunscreve-se aos temas morais e sociais”. Filtrou-se da entrevista a ideia de uma “democracia islâmica”, um conceito ambíguo que faz sucesso entre as facções modernizantes da Irmandade Muçulmana egípcia.
“Erdogan é um político muito ousado e muito autoritário, e não mais ouve ninguém, mas precisa entender que a Turquia não é um reino”, observou um cientista político da Universidade do Bósforo. Num indício de inquietude, o primeiro-ministro apontou o partido kemalista de oposição como responsável pelo levante. A revolta que se estende pela Turquia não tem a marca de um partido, abrangendo jovens e velhos, homens e mulheres, turcos e curdos, esquerdistas e liberais. Não é a nação inteira que se levanta, mas é quase toda a sua face resolutamente secular. Os protestos têm cobertura limitada dos veículos de comunicação, pois o governo Erdogan aprendeu a manipular de acordo com as suas conveniências as leis de segurança nacional do “Estado Profundo” kemalista que permitem processar jornalistas com base em acusações de ressonâncias orwellianas.
A Praça Tahir foi o símbolo das revoluções democráticas que saltaram de um país árabe a outro, derrubando ditaduras e provocando reformas em anacrônicas monarquias. Hoje, porém, em nome do Islã e no váculo político criado pela Primavera Árabe, iracundos fundamentalistas tentam tolher as liberdades civis e seitas de fanáticos perseguem as mulheres que ousam mostrar o rosto em público. A Praça Taksim está enviando uma mensagem, que será ouvida muito além da Turquia, de resistência ao inverno fundamentalista. Erdogan pode dizer o que quiser, mas isso é, sim, uma Primavera Turca.
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