O ESTADÃO - 03/05
Há males que vêm para o bem. Há males que vêm para o mal. Às vezes, males que vinham para o mal passam a vir para o bem. E males que outrora vinham para o bem, de repente, voltam a vir para o mal. O grande desafio é saber quando os males do bem se tornam males do mal. A tentação é seguir crendo que o que foi para o bem para o bem permanecerá.
O governo brasileiro cedeu à tentação. Acha que a deterioração da atividade global identificada nos indicadores do comércio, no arrefecimento do crescimento chinês, é um mal para o bem. Mal que abre espaço para a permissividade fiscal, sob a esperança de que fique tudo bem. Nietzsche já dizia que a esperança é o derradeiro mal, o pior dos males, porquanto prolonga o tormento. Mas a esperança é também o derradeiro mal, o pior dos males, porquanto prolonga a irresponsabilidade.
De 2010 a 2012, os surtos de deterioração da economia mundial tiveram um efeito curioso sobre o Brasil. Toda vez que houve um soluço ou engasgo lá fora, seja por causa do agravamento europeu, seja porque a China desacelerou mais do que se imaginava, seja porque os republicanos e os democratas nos EUA não conseguiam se entender, o Brasil acabou, digamos, se dando bem. Foi assim em 2010, quando o excesso de crédito no País e o inequívoco descompasso entre demanda e oferta não foram suficientes para se sobrepor aos impulsos deflacionistas que provinham do quadro global modorrento. Naquele ano, a economia brasileira cresceu 7,5%, mas registrou uma inflação para lá de modesta: 5,8%. Benditos e benquistos foram os males externos.
Algo parecido ocorreu em 2011, quando o descalabro da discussão política sobre a elevação do teto da dívida americana e a nova onda de piora na Europa desvirtuaram a recuperação e permitiram que o Banco Central (BC) desse uma guinada nos juros brasileiros, iniciando as quedas que levariam à inédita Selic de 7,25%, agora 7,5%. Naquele ano, crescemos só 2,7% e tivemos inflação mais alta: 6,5%. Contudo, a elevação dos preços fora motivada pelos choques de preços de commodities concentrados no início do ano. De agosto em diante, a inflação caiu e o BC foi aplaudido, louvado, pôde colher os louros de sua aposta visionária sobre os males auspiciosos. Tal situação perdurou em 2012, enraizando a impressão de que o que era ruim para os outros acabava sendo bom para nós, ainda que a alta dos alimentos nos mercados internacionais não se tenha encaixado nessa tese. Até o PIB moribundo foi aceito como um efeito colateral das agruras externas, e não como algo de nossa própria autoria. Afinal, o emprego subia, a renda aumentava. O PIB do povo foi, ainda, um sucesso em 2012.
Mas a economia brasileira mudava insidiosamente. O que era sólido - as contas fiscais - se tornou fluido, devido às artimanhas contábeis e ao excesso de criatividade. Mais recentemente, o que era fluido - o superávit primário - ameaça se tornar vaporoso, fumegante, nocivo. A meta de superávit primário está prestes a ser abandonada, não porque o Brasil alcançou o nirvana fiscal, a dívida bruta em eterno repouso ou declínio, mas sim porque é politicamente conveniente. Sobretudo porque os alquimistas do governo misturaram tanta coisa no caldeirão fervilhante de ideias e medidas que já não sabem como isso influenciará a retomada da atividade. Sobrou para o mal que geralmente vem para o mal, mas que alguns teimam em achar que vem para o bem: o perdularismo em nome da atividade.
Recentemente, a economia tem crescido cada vez menos, com uma inflação muito alta para tão parco crescimento. As contas públicas perderam credibilidade e tração. O saldo deficitário em transações correntes cresceu. É provável que a desaceleração da China e do mundo agrave esse quadro, prejudicando as exportações, pressionando o câmbio, a inflação, as reservas. O mal externo se somará aos nossos próprios ais.
A nós não bastarão nossos próprios ais, Mario Quintana. Ainda que a ninguém sua cruz seja pequenina. Por pior que seja a situação da China, os nossos calos doem muito mais. Cada vez mais.
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