quarta-feira, outubro 03, 2012

Caciques e pajés - ALDO PEREIRA

FOLHA DE SP - 03/10


Estado laico é exceção histórica. Religiões têm delirante ambição política: a supremacia universal (budistas, islâmicos, cristãos) ou o nacionalismo (hindus, judeus)



Rivalidade entre xamã e chefe temporal pode ocorrer em muitas sociedades iletradas - exceto quando alguém acumula os dois papéis.

Igual relação subsiste há milênios. Moisés delegava a seu irmão Aarão funções como a de intimidar o faraó com a mágica de converter bordão em serpente (Êxodo 7:10). Ou supervisionar queima ritual de incenso. (Com cautela! Segundo Levítico 10:1-2, quando dois filhos de Aarão erraram no cerimonial, Javé os fulminou ali mesmo, diante do pai e do tio.)

Já comunicação política de Moisés com Javé sempre foi direta, como na revelação de Êxodo 3:1-4 e na audiência de promulgação do Decálogo (Êxodo 20 e Deuteronômio 15).

Aliás, tal exemplo clássico de atribuir autoridade divina à lei tem precedentes arqueológicos. O preâmbulo do código de Hammurabi, que reinou na Babilônia por volta de 1780 a.C., começa assim: "Quando [o deus] Marduk me incumbiu de reinar, proteger o direito à terra..."

Em comunidades de antigos fenícios, cartagineses, gregos, etruscos e outros povos mediterrâneos, governantes oficiavam ritos sagrados, como sugere a lenda na qual o rei Agamenon sacrifica sua filha Ifigênia no altar de Ártemis. Vários imperadores romanos extorquiram do Senado diplomas de "divus" (divindade, divino) - para si e familiares.

Na Idade Média, Carlos Magno (742-814) renovou a prática de proteger e manipular os papas segundo modelo inspirado no de Constantino (272-337). Dois sucessores seus, Frederico I ("Barba Ruiva", 1122-1190) e seu neto, Frederico II (1194-1250), azedariam essa "entente cordiale", mas a Igreja aprendeu o jogo. Papas cooptaram reis avassalados, como os da península ibérica, nas guerras contra califas que exerciam poderes cumulativos semelhantes aos papais, conjugando sumo-sacerdócio e monarquia.

No Tibete do século 14, dalai-lamas despojaram de poder temporal a realeza e o exerceram para estabilizar por meio milênio a simbiose oligarca da aristocracia com o clero.

No Irã do século 20, mulás puderam explorar a impopularidade de um xá subserviente aos EUA para impor a implacável teocracia atual.

Ideias de democracia secular remontam a Aristóteles (384-322 a.C.), mas o modelo não se institucionalizaria antes das revoluções republicanas do século 18, nos EUA e na França. Aliás, incompletamente.

Por exemplo, a Constituição republicana de 1891 aboliu no Brasil o status do catolicismo como religião oficial, mas não erradicou sua influência. Em 1896-1897, a Igreja se aliou a latifundiários nordestinos para induzir o Exército a exterminar de 20 a 25 mil camponeses famélicos que o controvertido Antônio Conselheiro (1830-1897) liderava em Canudos.

Toda religião descarta como lunáticos mitos e tabus das outras, mas preserva os próprios e os resguarda de objeções filosóficas e institucionais do humanismo. Em geral, teologias alicerçam delirantes ambições políticas, seja de supremacia universal (budismo, cristianismo, islamismo) ou excepcionalidade nacionalista (hinduísmo, judaísmo, xintoísmo).

Sim, rivais ou aliados, templo e palácio decerto coexistirão por tempo indefinido. Embora atestem parentesco entre milhares de deuses, ciências sociais não certificam nascimento nem óbito nem mesmo identidade deles: como na Bíblia, às vezes são os mesmos, adorados com nomes diferentes, às vezes são outros com os mesmos nomes.

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