quinta-feira, março 29, 2012

De Varsóvia a Havana - DEMÉTRIO MAGNOLI


O Estado de S.Paulo - 29/03/12


O papa não é o mesmo, a cidade é outra e os tempos mudaram, mas o paralelo é incontornável. Quando, em 1979, João Paulo II falou numa Varsóvia submersa no som dos sinos que repicavam, começou a acabar a história do comunismo europeu. Ontem, em Havana, Bento XVI falou aos cubanos, retomando os antigos temas da verdade, da liberdade de consciência, de fé e de expressão. Será esta a centelha do colapso de um comunismo caribenho que copiou os traços essenciais do sistema inventado na URSS de Stalin?

Não é a primeira visita papal a Cuba. João Paulo II falou em Havana em 1998, iniciando uma ambígua aproximação entre a Igreja e o regime. De lá para cá, como explica a blogueira Yoani Sánchez, "podemos rezar em voz alta, mas criticar o governo continua a ser pecado, blasfêmia". Há 14 anos a sentença final do papa foi sobre a liberdade do espírito. Será viável retalhar o princípio da liberdade em fatias, tolerando uma delas para conservar o veto às demais?

A interlocução entre a Igreja de Cuba e o governo dos Castros propiciou a libertação recente de dezenas de prisioneiros de consciência. Entretanto, na maioria dos casos, a liberdade foi reduzida a um "direito à deportação", uma barganha que reforça a narrativa política do governo cubano. Dias atrás, o arcebispo de Havana permitiu a remoção de um grupo de dissidentes que se abrigara na Igreja da Caridade e publicou uma nota no jornal do Partido Comunista, escrita nos tons inconfundíveis do oficialismo. A liberdade de religião poderá florescer num edifício social erguido sobre o dogma do monopólio partidário da verdade?

Cuba é irrelevante sob os pontos de vista da economia e da geopolítica globais. É, contudo, um teatro fundamental para o debate sobre o tema da liberdade. Os Castros reconheceram, literalmente, o fracasso do sistema cubano. Mas os muros da ilha caribenha continuam cobertos pela palavra de ordem apocalíptica que condensa a doutrina do poder: "Socialismo ou morte". A disjunção lógica encontra uma solução dupla, nas esferas da política e da linguagem. Política: as reformas destinadas a criar uma economia mista, estimulando a iniciativa privada e emulando o "modelo chinês". Linguagem: a produção de um novo significado para "socialismo", que passa a designar exclusivamente o papel dirigente do Partido Comunista. Terá futuro um regime que admite fatias diversas de liberdade, mas rejeita de modo absoluto o exercício das liberdades políticas?

No universo da lógica, o reconhecimento oficial do fracasso do sistema traz implícita a admissão da falibilidade histórica do Partido Comunista. Disso seguiria o corolário da abertura política, com a promoção de um debate nacional sobre as alternativas disponíveis de organização do poder e da economia. No entanto, paradoxalmente, Raúl Castro escolheu a última conferência partidária como ocasião para reiterar a regra de ouro do partido único, repetindo o argumento de que todas as demais correntes de pensamento representariam "interesses estrangeiros". A tradição comunista identifica o partido com o proletariado, uma classe social que seria portadora da chave do futuro. Os comunistas cubanos inovam ao identificar o partido com a própria nação, uma proposição com consequências radicais. Seria realista imaginar a hipótese de uma abertura política conduzida por um regime que não distingue o dissidente do espião?

O destino de Cuba tem implicações decisivas para a esquerda latino-americana. Na Europa, as esquerdas aprenderam a lição da URSS e abraçaram o princípio da liberdade política. Na América Latina, onde o pensamento de esquerda se tingiu de nacionalismo e antiamericanismo, um Muro de Berlim mental continua em pé. O teorema da "ditadura virtuosa", que serve como álibi para a fidelidade ao regime castrista, reflete a alma dessa esquerda. "Por que insistir nas liberdades, se há saúde e educação?", indagam quase todos os nossos "intelectuais progressistas". O teorema está apoiado no material quebradiço de que são feitas as lendas. A Cuba pré-revolucionária, de Fulgêncio Batista, já exibia indicadores sociais invejáveis, enraizados nos padrões singulares de colonização da ilha. Mas a lenda deve ser preservada, pois forma a gramática de um precioso livro de memórias. Afinal, sem ela, o que fazer com a pilha incomensurável de artigos, ensaios e discursos consagrados à canonização do castrismo?

Às vésperas da visita de Bento XVI, a Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro aprovou duas moções que solicitam o fechamento da prisão de Guantánamo e o encerramento do embargo econômico americano a Cuba. Na mesma sessão, curvou-se à vontade de dois parlamentares, do PCdoB e do PSOL, rejeitando moções que pediam o indulto para os presos políticos remanescentes e a concessão de autorização de viagem a Yoani Sánchez. As moções aprovadas, como as rejeitadas, incidem sobre decisões políticas de Estados soberanos - mas, felizmente, ninguém se lembrou do argumento da soberania nacional para poupar os EUA da crítica justa. O critério dúplice usado pelos senadores espelha a duplicidade geral que contamina a esquerda brasileira quando estão em jogo as liberdades e os direitos humanos. Mas como exigir coerência de princípios daqueles que ainda vivem à sombra de um Muro de Berlim ideológico?

Bento XVI pisou em solo cubano mencionando os "presos e seus familiares", palavras simples que não foram pronunciadas nenhuma vez por Lula ou Dilma Rousseff. Cuba não é a Polônia de 1979. Ela não participa de um sistema internacional em colapso nem dispõe da oportunidade de se incorporar a um sistema alternativo, próspero e democrático, constituído pela Europa Ocidental. A ilha caribenha marcha, numa aventura difícil e incerta, rumo a um capitalismo sem liberdades políticas. Seria esse o novo horizonte utópico da esquerda latino-americana?

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