quarta-feira, dezembro 21, 2011

"Cool-Eekah" - ANTONIO PRATA


FOLHA DE SP - 21/12/11

Há que se introduzir a cuíca no blues; dos instrumentos usados nos trópicos, ela é, sem dúvida, o mais sofrido

É comum perguntarem a nós, escritores, de onde vêm as ideias. Nunca sei bem o que responder, pois raramente as tenho: escrevo bem mais em cima de observações, como um viajante que anota no bloquinho o cenário do lado de lá da janela, do que como criador, aquele que faz brotar as janelas e o cenário das páginas do seu bloquinho. Vez por outra, contudo, sou agraciado com um lampejo de inspiração e experimento esta alegria que é ver surgir, do banal, o extraordinário -como do milho, a pipoca. Semana passada, por exemplo, tive uma ideia. Modéstia à parte, uma grande ideia.

Estava em Chicago, num show de blues. O guitarrista puxava um solo comprido, encharcando com sua dor de cotovelo a meia dúzia de gatos pingados espalhados pelas mesas do bar ("Do bar esfumaçado", diria eu, se as leis contra o cigarro não tivessem feito com que essa nuance fundamental da vida noturna se esfumasse nas brumas do passado). A música era triste pra burro, como convém ao gênero. Falava de um cara que acorda certa manhã, se dá conta de que sua "baby was gone" -e dá-lhe lamento. Já estava quase no fim quando, entre uma nota e outra da guitarra, ouvi um som que não vinha da banda: era a ideia, que dava suas primeiras cabriolas por minha caixa craniana, louca para sair e reverberar no palco bem mais amplo do mundo. A ideia, simples e fundamental, era a seguinte: há que se introduzir a cuíca no blues. Tô falando sério.

De todos os instrumentos usados nos trópicos, a cuíca é, sem dúvida, o mais sofrido. Vai da dor aguda à grave desolação, num pranto rítmico potente, como se um filhote de elefante estivesse preso no pequeno cilindro de metal, gritando pela mãe e chacoalhando sua mínima tromba de bambu. Mesmo em seus momentos mais frenéticos, a cuíca não esconde a melancolia, e, pensando nela agora, depois de minha epifania, percebo que sempre esteve mais próxima das águas lamacentas do Mississipi do que das ondas verdejantes da Guanabara.

Imaginem o bluesman tocando seu "dum-dum-dum-da" e a cuíca preenchendo o breve espaço entre os acordes com um "uh-uh-uh-uhhhl"; a banda repetindo o "dum-dum-dum-da" e a cuíca mandando seu "rom-roooom-rom-roooom". Pense num Buddy Guy improvisando duas ou três notas e, digamos, Osvaldinho da Cuíca imitando-o e desafiando-o, num duelo lancinante. Ah, gaita, teus dias babentos estão contados!

Voltando de viagem, empolgado, conversei com alguns músicos e descobri algo sensacional (quase tão sensacional quanto a futura execução de minha ideia): a cuíca já deu seus passeios pela música americana. Em 1974, Dizzy Gillespie veio a São Paulo e gravou um disco, "Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó" -ótima dica, aliás, de presente de Natal. O resultado é belíssimo, e a cuíca faz um excelente par com o trompete, mas o jazz não é o seu lar. O jazz é uma música louca e cheia de esperança. Oferece, se não uma saída, ao menos uma vingança contra os amargores da vida, picando-a em pedacinhos e reconstruindo-a, cubisticamente, ao seu bel-prazer. O blues, não. Ele não oferece salvação. É um mar de lágrimas, ao qual a cuíca precisa juntar, imediatamente, seus lindos soluços. Fica aí a ideia.

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