sábado, outubro 08, 2011

GILBERTO MENDES - O músico que amava as mulheres


O músico que amava as mulheres
GILBERTO MENDES
O ESTADÃO - 08/10/11


O Rio de Janeiro continua lindo, todo mundo sabe, mas eu conheci essa cidade maravilhosa pela primeira vez em fins dos anos 1940, quando ainda era possível descobrir um restinho de Machado de Assis em algum recanto. Lembrome de um dia tranquilo, andando feliz pelas ruas ao lado da Avenida Rio Branco, entre os museus e o Ministério da Educação, e de repente me surpreende um pequeno e meio escondido teatro, misterioso, como aquele do Lobo da Estepe - só para poucos, só para os raros ! - anunciando às 5 horas da tarde um concerto do pianista polonês Witold Malcuzinsky.

Que hora mais imprópria, pensei, para um concerto daquela importância, e no meio da semana, de um pianista de nome internacional! Mas eu não podia perdê-lo. Olhei o relógio, já ia começar.

Entrei na sala pequena, mal iluminada, pouca gente para um concerto daquele nível, e eis que surge em cena uma figura impressionante, porte leonino, que logo ataca ao piano, com fúria, a Sonata em Si Menor de Franz Liszt.

Acho que não era meu primeiro contato com essa sonata, mas as estranhas circunstâncias em que eu a ouvia naquele momento me fizeram sentir plenamente todo seu impressionante diabolismo. Que é também, de certa maneira, um traço da contraditória personalidade de seu autor, que combinava um forte anseio religioso refreando o homem que amava as mulheres também dentro dele.

Liszt manteve tempestuoso relacionamento amoroso com uma mulher casada, a Condessa Marie d"Agoult, com quem teve 3 filhos, entre eles a famosa Cosima, que chegou a trocar seu marido, o grande regente Hans von Büllow, por Wagner, talvez por ser herdeira da mesma inquietude do pai. Sedutor nato, posteriormente Liszt passou a viver com a condessa Carolyne Sayn-Wittgenstein. E consta mesmo que já velho, quase foi atingido pelo tiro de uma jovem que se sentiu abandonada por ele. Quem sabe por isso tenha se refugiado numa ordem religiosa. Para ficar um pouco sossegado.

E sua música é tudo isso aí, num dia um Sonho de Amor super romântico, que arrebata todo tipo de ouvinte, principalmente feminino, em outro dia está À Beira de um Regato, transportando- nos deliciosamente no fluir arpejado das notas.

Mas essa Sonata em Si Menor é a coisa mais terrível, em sua beleza algo sinistra. Tanto que já foi usada no cinema num thriller clássico, o Dr.Mabuse, de Fritz Lang, obra prima do expressionismo alemão, que pode ser encontrada por ai em DVD.

Comemoramos neste ano os duzentos anos do nascimento de Franz Liszt, esse intrigante compositor de origem talvez magiar, que inventou o recital de piano moderno, a expressão "poema sinfônico", fascinou muitos de seus colegas e deu origem a uma linha de vanguarda húngara continuada por Bela Bartok, Gyorgy Ligeti e o ainda vivo Gyorgy Kurtag, agora famoso depois de velho. Impressionante observar como em suas últimas obras pianísticas, muito pouco tocadas, Liszt trocou todo o esbanjamento virtuosístico de sua característica escrita musical por uma simplicidade de estruturação, uma economia que já prenunciava Bartók. Em seu livro Mr.Croche, Antidilettante Debussy escreveu que a beleza inegável de sua obra nasce de que ele amava amúsica com exclusão de todo outro sentimento. O mais belo momento da Sonata para violino e piano de Debussy tem na melodia os mesmos dó sustenido -mi - fá sustenido sobre a mesma harmonia do Soneto 104 de Petrarca, de Liszt. Como a de Chopin, uma harmonia já de nosso tempo, tonal moderna, até meio piano bar.

O arguto compositor dodecafonista argentino Juan Carlos Paz, no delicioso livro Alturas, Tensiones, Ataques, Intensidades (Memórias I) chega a dizer que Liszt inventou muitas coisas, entre elas, a música de Wagner.

Seu genro! Curiosa opinião que vale conferir.

Tive a emoção de ver em Bayreuth o casarão onde viveu Wagner e ainda uma árvore plantada por Liszt - assim me garantiram ! - nas terras em volta de um convento numa ilha no rio Reno, em frente a Rolandseck, em que se reuniam habitualmente Wagner, Cósima, Liszt, Clara Schumann e outras celebridades da época. Eu estava hospedado no apartamento do pianista argentino Jorge Zulueta, meu velho amigo, artista em residência convidado pelo Prefeito de Rolandseck a ocupar todo o sótão de uma pequena galeria de arte, bem em frente a essa histórica ilha fluvial que me fez sentir tão próxima a vivência social intimista dessas impressionantes figuras da história da música. Não é todo dia que acontece.

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