sexta-feira, agosto 26, 2011

ARTHUR DAPIEVE - Quarenta e sete

Quarenta e sete
ARTHUR DAPIEVE
O GLOBO - 26/08/11
Tio Vânia na Graça Aranha

Quarenta e sete anos é uma idade estranha para se assistir a "Tio Vânia". Porque esta é a idade do personagem de Tchekov, o personagem que subitamente descobre que toda a sua vida foi baseada em falsas premissas, que nenhuma de suas esperanças de juventude vingou e, que como no blues de Robert Johnson, todo o seu amor foi em vão.

Desde a primeira montagem, de Stanislavski, em Moscou, em 1899, é óbvio que espectadores de todas as idades são levados a confrontar as suas próprias realizações por menores que sejam, com as de Ivan Petróvitch - cujo diminutivo do prenome batiza a peça. Confrontá-las aos 47 anos, porém, adquire um significado distinto, arrepiante.

Não só porque, em certa medida, qualquer vida se revela tão absurda quanto a de Vânia. Também porque ele projeta, a partir dos seus 47 anos mal vividos, que faltam 13 para os 60. "Muito tempo", para ele, no tédio burguês da Rússia rural e pré-revolucionária. Pouco tempo, para mim, na histeria do Brasil novo-rico do século XXI.

Eu tinha 20 anos quando assisti pela primeira vez a "Tio Vânia". Para um garoto naquela idade, a peça de Tchekov parecia um balaio de advertências: não jogue sua vida fora, faça algo de útil dela, pense na posteridade, não perca tempo amando sem ser amado. Corria 1984. Saí do Teatro dos 4 como se tivesse levado uma surra de chicote.

Não havia qualquer vestígio de esperança na obra que o autor russo, com humor negro, insistira em chamar de "comédia". Vânia administrava uma fazenda com a sobrinha, enviando os rendimentos para a capital, a fim de bancar a carreira acadêmica do marido de sua falecida irmã, agora casado com uma mulher muito mais jovem.

Um dia, Vânia afinal percebeu que o ex-cunhado não passava de uma fraude intelectual. Aposentado, o professor Serebriákov se refugiara na fazenda, alterando-lhe a rotina com caprichos. Enquanto isso, sem querer querendo, sua bela Helena enfeitiçou Vânia e o amigo médico, Astrov. Para Tchekov, a beleza entristece, ao expor os homens à imperfeição de suas existências. Qual uma tempestade de outono, o conflito se aproxima, estouram alguns trovões, mas logo a vida, aquela vida, segue o seu curso.

A frustração prevalecia no mundo observado por Tchekov. Pior que isso. Os personagens de "Tio Vânia" pareciam preferir viver atolados nela do que fazer força, força de verdade, para se libertar, para mudar. Vânia odeia o ex-cunhado e ama Helena.

Astrov deseja Helena. Helena deseja Astrov. Sônia, a sobrinha, ama Astrov em silêncio.

Nada de fato acontecia. Como, aliás, é característico do teatro de climas do autor russo.

Num determinado momento, em torno de copos de vodca, Sônia perguntava à madrasta se ela teria preferido um marido jovem. "Claro!", responde Helena, rindo. Eis a comédia à moda de Tchekov, dolorosa. Anos depois, assistindo ao filme "Era uma vez em Tóquio", de Yasujiro Ozu, eu descobriria uma cena análoga. A caçula da família perguntava, em lágrimas, à viúva do seu irmão morto na guerra se a vida era mesmo só frustração. "É, sim!", sorria a gentil Noriko, interpretada por Setsuko Hara.

Ajudava - e muito - na devastação emocional descrita e causada por "Tio Vânia", a qualidade daquela montagem do Teatro dos 4 em 1984. Dirigida por Sérgio Britto, a partir de uma tradução de Millôr Fernandes, com Armando Bogus no papel-título, Christiane Torloni como a lânguida Helena, além de Rodrigo Santiago, Nildo Parente e Denise Weinberg nos outros papéis principais. Nunca os esqueci, o que gerou na minha cabeça um padrão difícil de superar. Inclusive para Louis Malle, que filmou "Tio Vânia em Nova York" em 1994, com Wallace Shawn e Julianne Moore.

Montagem do bom grupo mineiro Galpão dirigida por Yara de Novaes, "Tio Vânia (Aos que vierem depois de nós)", em cartaz no Sesc Ginástico só até o próximo domingo, já sofreu sérios reparos de Barbara Heliodora neste caderno. O anacrônico rádio não me incomodou tanto quanto as canções em espanhol ou o que me soou como uma excessiva ênfase na comicidade, que deveria apenas servir de distância para o impulso que faz o golpe de Tchekov penetrar mais fundo. Entretanto, gostei de Eduardo Moreira (Astrov) e, sobretudo, da atriz convidada Mariana Lima Muniz (Sônia).

De qualquer forma, pesados contras e prós, foi bacana reencontrar Vânia, agora, quando ambos temos 47 anos. Ele, claro, os terá para toda a sua merecida eternidade. Eu... Mesmo nas minhas manhãs mais cinzentas, porém, tenho de admitir que escutei as advertências de 1984 e fiz alguma coisa na vida - em especial, uma filha.

Anton Pavlovitch Tchekov jamais chegou aos 47 anos de seu personagem mais famoso. Morreu aos 44, em 1904, da então incurável tuberculose, que se manifestara duas décadas antes. Ele começara a tossir sangue no mesmo 1884 no qual se formara em Medicina, sua principal ocupação durante toda a vida, por mais que escrevesse compulsivamente contos e peças. Além de "Tio Vânia", as mais famosas são outras duas "comédias", "A gaivota" e "O jardim das cerejeiras", e o drama "Três irmãs".

Pode-se enxergar Tchekov em Astrov. Médico deprimido pelas condições de vida dos camponeses russos, entusiasmado de um modo quase panteísta pela natureza, desconfiado do casamento. O seu, breve, com a atriz Olga Knipper, não gerou filhos, mas um aborto espontâneo. Talvez não haja imagem mais apropriada à desesperança.

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