O governo sob a tutela de Lula
REVISTA ÉPOCA
O ex-presidente comandou a reação do Planalto à crise Palocci. O risco dessa opção pode ser o enfraquecimento de Dilma no futuroAndrei Meireles, Leonel Rocha e Marcelo Rocha
ELE VOLTOU
Lula com senadores aliados em Brasília, na semana passada. Chamado às pressas, ele agiu como uma espécie de tutor do governo Dilma
Uma lufada de um passado nem tão distante soprou sobre Brasília na semana passada. Como havia prometido em um dos (muitos) momentos passionais no fim de seu governo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou rápido ao centro da política nacional: apenas cinco meses depois de entregar o cargo à escolhida para suceder-lhe, a presidente Dilma Rousseff. Lula colocou um paletó e durante três dias agiu como se ainda estivesse na Presidência da República, comandando articulações para tentar contornar a crise que se instalou no governo a partir de suspeitas sobre as atividades empresariais do ministro-chefe da Casa Civil, Antonio Palocci. Em três dias, Lula reuniu-se com a presidente, Palocci e deputados e senadores do PT e dos partidos aliados. Interessado em blindar Palocci contra investigações sobre seu rápido enriquecimento por uma CPI no Congresso, ele deu orientações a Dilma, aconselhou ministros, tentou apaziguar parlamentares insatisfeitos com o tratamento distante dispensado pelo Palácio do Planalto. Em seguida, Dilma abriu sua agenda para reuniões com parlamentares e mandou arquivar o kit homofobia (cartilhas e vídeos a favor da tolerância sexual que seriam distribuídos nas escolas pelo Ministério da Educação), criticado pelas bancadas evangélicas.
A volta de Lula, em certa medida, confirmou o temor manifestado por muitos analistas antes da eleição de Dilma: ele poderia agir como uma espécie de tutor do governo, devido à inexperiência política da presidente, que, antes da eleição, fizera uma carreira em cargos de natureza mais técnica. Como que a corroborar esse receio, a volta de Lula ocorreu em meio à sensação generalizada de um vácuo de liderança no Planalto, por causa do recolhimento da presidente devido a seus problemas de saúde (leia mais) e da crise em torno de Palocci. Mais afeita a questões gerenciais do governo e notoriamente avessa às articulações políticas, Dilma terceirizou para Palocci a tarefa de negociar com as lideranças partidárias de sua imensa e heterogênea base de aliados do Congresso. Cabe a Palocci ser duro e seletivo nas nomeações para cargos na máquina pública, para os quais Dilma passou a exigir mais qualificações técnicas. A estratégia arrancou aplausos da opinião pública, mas despertou insatisfações no Congresso que vinham sendo cozinhadas em fogo lento até a descoberta das prósperas atividades de consultoria de Palocci.
Com Palocci sob tiroteio, as críticas ao estilo de Dilma destamparam no Congresso e se refletiram na derrota que o governo sofreu na votação do projeto da nova lei do Código Florestal pela Câmara na última terça-feira. Por 273 votos contra 182, os deputados, contra a vontade do Planalto, aprovaram uma emenda ao código que anistia os responsáveis por desmatamentos feitos até 2008. A emenda foi apresentada pelo PMDB, segundo maior partido da base do governo. Um dia antes da votação, em meio a um impasse nas negociações, Dilma fez uma operação arriscada. Ao perceber que o governo perderia a votação, Dilma mandou Palocci telefonar para o vice-presidente, Michel Temer, e lhe transmitir um duro recado: o PMDB deveria votar contra a emenda.
O PMDB espera sair do almoço com Dilma com mais 50 cargos para seus integrantes sem mandato
Uma versão que circulou no Congresso atribuiu a Palocci a afirmação de que, se o PMDB não fizesse isso, todos os ministros do partido seriam demitidos. Mas, segundo Temer disse a um interlocutor, a ameaça de demissão tinha como alvo apenas o ministro da Agricultura, Wagner Rossi, seu aliado e integrante da bancada ruralista, principal patrocinadora da emenda rejeitada pelo Planalto. Temer disse que não fez nada. Depois da derrota do governo, coube a Palocci demover Dilma da intenção de punir o PMDB. No partido, o ultimato da presidente foi recebido como uma arrogância descabida, em um momento em que o governo precisa dos peemedebistas para evitar a criação de uma CPI contra Palocci. Mesmo sem ser concretizada, a ameaça desgastou Dilma com o PMDB e erodiu o cacife político da presidente.
Em seguida ao entrevero, Lula, em sua passagem por Brasília, reuniu-se com os principais caciques do PMDB - entre eles Temer e o presidente do Congresso, senador José Sarney (PMDB-AP). No encontro, Lula prometeu melhorar o relacionamento do Planalto com o PMDB. Os senadores do partido deverão ser recebidos em um almoço com Dilma e Palocci no Palácio da Alvorada, assim como foram os senadores petistas na semana passada. Esses gestos de atenção costumam ser bem recebidos pelos parlamentares, mas não são o bastante para reverter a insatisfação. Os senadores do PMDB esperam sair da mesa do Alvorada com a garantia de mais 50 bons empregos para políticos sem mandato, como o ex-governador de Goiás Íris Resende e o ex-senador mineiro Hélio Costa, como recompensa para evitar a criação da CPI contra Palocci.
A ação de Lula envolveu não só apagar o fogo entre os aliados do governo, como também assestar baterias contra a oposição. Na conversa com Dilma e Palocci, Lula disse que o governo precisa mirar no ex-governador de São Paulo José Serra. Lula afirmou que Serra seria o responsável pelo vazamento de dados s financeiros da Projeto, a empresa de Palocci, que mostraram um faturamento de R$ 20 milhões no ano passado - concentrado sobretudo nos dois meses depois da abertura das urnas das eleições presidenciais em outubro. Publicamente, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, acusou a Secretaria de Finanças da prefeitura de São Paulo, pilotada por uma aliado de Serra, pelo vazamento de dados fiscais da empresa.
Os tucanos e a prefeitura de São Paulo contestam as acusações de Gilberto Carvalho. Para eles, o que ocorreu foi fogo amigo, disparado por petistas descontentes com a perda de espaço no governo Dilma. Sem força suficiente no Congresso para abrir uma investigação contra Palocci, os tucanos trataram de agir na esfera municipal de São Paulo. Na manhã da quinta-feira, na sede do PSDB em Brasília, o vice-presidente do partido, Eduardo Jorge Caldas Pereira, teve a ideia de abrir uma CPI na Câmara Municipal paulistana. Depois de obter autorização, Eduardo Jorge ligou ao líder do PSDB, o vereador Floriano Pesaro, e sugeriu a instalação de uma CPI a pretexto de investigar a denúncia de vazamento. O objetivo, na verdade, é convocar os sócios da Projeto, a consultoria de Palocci.
Na última sexta-feira, Palocci enviou um documento ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel, com explicações sobre o faturamento da Projeto - origem do aumento de seu patrimônio. Palocci tem se recusado a abrir a lista de clientes que ele teria atendido em sua consultoria sob a alegação de sigilo contratual. Na semana passada, o banco Santander confirmou ter contratado a Projeto para que Palocci proferisse palestras sobre a economia para seus executivos. Foi o terceiro cliente que tornou pública a contratação de Palocci.
EM CRISE
Por causa do Código Florestal, Palocci (à esq.) telefonou para o vice Michel Temer (à dir.) em nome de Dilma e ameaçou com a demissão do ministro da Agricultura, Wagner Rossi. O PMDB não gostou
Antes do Santander, o plano de saúde Amil e a construtora WTorre já haviam confirmado o uso dos serviços de Palocci. No caso da WTorre, descobriu-se que a empresa recebeu, no ano passado, R$ 9,1 milhões em créditos tributários da Receita Federal. O valor se refere a impostos que a empresa considera ter pagado a mais em 2006 e 2007. As ordens de pagamento foram emitidas no dia 6 de outubro, três dias após o primeiro turno das eleições. De acordo com o Ministério da Fazenda, os pedidos de restituição da WTorre foram feitos em abril de 2009. A empresa esperou um ano até apresentar um recurso à Justiça de São Paulo para que a Receita Federal fosse obrigada a analisar o pedido. Em agosto passado, a Justiça acatou o pedido. Passados 44 dias, a Receita Federal, mesmo sem ser obrigada pela Justiça, restituiu os R$ 9,1 milhões à WTorre. Ou seja: a WTorre esperou um ano e quatro meses por uma decisão judicial e, depois, recebeu em menos de dois meses.
Embora a questão tenha sido levada à Justiça, especialistas em tributação estranharam a celeridade. Em geral, processos de devolução de créditos tributários como esse levam cinco anos. Além de contratar os serviços de Palocci, a WTorre contribuiu com R$ 2 milhões para a campanha eleitoral da então candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, da qual Palocci foi o principal coordenador. As doações, de R$ 1 milhão cada uma, ocorreram em 24 de agosto e 9 de setembro. O primeiro milhão de reais foi doado no mesmo dia em que foi publicada a decisão judicial que obrigou a Receita a analisar os pedidos da WTorre.
Apesar da névoa que cerca os contratos de Palocci, o Palácio do Planalto aposta que a crise se esvaziará se o procurador-geral, Roberto Gurgel, decidir que não há motivos para uma investigação. Gurgel está na expectativa de ser reconduzido para mais um mandato. O Planalto espera também aplacar a insatisfação dos aliados no Congresso e conta com a ação política de Lula. Mas essa opção contém o risco de enfraquecer Dilma com apenas cinco meses de governo e minar seu poder no futuro. "A Dilma perde autoridade com isso", afirma o cientista político Amaury de Souza, da consultoria MCM. A autoridade é um bem inestimável para um presidente. Preservá-la implica, muitas vezes, não recorrer a atalhos - como a ajuda de Lula.
Se não conseguir exercer o poder na plenitude que seu cargo exige, Dilma corre o risco de se tornar uma figura como o presidente da Rússia, Dmitri Medvedev. Todo mundo sabe que na Rússia o poder real é exercido pelo ex-presidente Vladimir Putin. Impedido pela lei de concorrer a um novo mandato, Putin fez como Lula: elegeu Medvedev, mas exerce o poder como primeiro-ministro e nos bastidores. "Não precisamos de um Putin no Brasil, uma figura que fique por trás do trono. Dilma tem de aprender a se relacionar com o mundo político, goste ou não goste", diz Amaury de Souza. "Isso faz parte do contrato social que a sociedade estabeleceu com ela."
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