Governo emparedado
EDITORIAL
O Globo - 30/05/2011
É preocupante a decisão da presidente Dilma Rousseff de cancelar a distribuição do kit anti-homofobia - sem discutir seu conteúdo -, uma cartilha elaborada por organizações não governamentais para ajudar a combater o preconceito contra homossexuais em escolas públicas. Primeiro, porque o governo federal acabou por dar abrigo a um retrocesso na questão do combate ao sexismo, num momento em que se reproduzem, em diversos estados, manifestações de violência, física principalmente, motivadas pela intolerância sexual. Segundo, porque, ao se dobrar a um grupo de pressão - no caso, a bancada evangélica no Congresso -, o Planalto deixou evidente que continua contaminado pelo clientelismo do toma lá dá cá da baixa política, marca dos governos do PT na relação com a base.
Dilma procurou justificar o veto com argumentos que disfarçam os reais motivos de sua decisão. Também nesse aspecto o governo passou ao largo de uma discussão que poderia até ser enriquecedora - a qualidade do material a ela apresentado (de resto, fica a suspeita de que a presidente teria sido vítima de uma esperta pegadinha dos líderes evangélicos, ao examinar um kit que não corresponderia ao conteúdo dos cadernos a serem distribuídos). Mas, embora seja mais um elemento a mostrar a maneira rasteira como a questão foi decidida em Brasília, este chega a ser um dado menor em comparação com a carga de estragos que o episódio da suspensão da cartilha contém, pontual e estrategicamente.
De imediato, porque fez do governo refém do grupo parlamentar que agiu com total desenvoltura para emparedar a presidente. No caso, com o pior da barganha política, por meio de ameaças de aprovar a convocação, ao Congresso, do ministro Antonio Palocci, enredado em suspeitas de tráfico de influência que lhe teria permitido multiplicar o patrimônio em curto período de tempo. Atingido o Planalto em seu flanco mais fragilizado, municiou-se o fisiologismo com as armas do emparedamento: nada indica que, atendida nesta primeira investida, se contentará com o butim político a bancada religiosa (outras tantas que venham a apresentar ao governo a fatura do apoio). Como agravante, o episódio encerra uma condenável submissão do Estado, laico por definição, a interesses religiosos. No aspecto estratégico, a barganha tem reflexos ainda mais graves, porque compromete a participação do governo na luta, de ampla mobilização, contra o preconceito sexual. E aqui se constata uma incoerência: quando o Supremo Tribunal Federal considerou legais as relações homoafetivas, com o reconhecimento de direitos civis de casais homossexuais, Brasília esbanjou elogios à posição da Corte. Ocorre que a distribuição de material de condenação ao sexismo e o voto do STF são partes que se juntam a outras iniciativas de um mesmo movimento - o combate à homofobia, do qual é imperioso que decorra a criminalização da odiosa prática.
A aceitação legal das relações homoafetivas foi apenas uma batalha vencida contra práticas homofóbicas. Mas a ela é fundamental que se proceda, no Congresso, à inscrição, no corpo legal do país, da homofobia como crime (projeto de lei 122). Como o Legislativo é um poder no qual estão representadas todas as correntes de ideias, inclusive os evangélicos e outros segmentos que condenaram o kit, é de se temer que, uma vez submetida a plenário, a criminalização da discriminação sexual leve a debates movidos por interesses corporativos, em prejuízo da essência do problema.
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