O terceiro fracasso do Mercosul
Thiago Marzagão
O ESTADO DE SÃO PAULO - 05/02/11
Muito já se escreveu sobre o fracasso do Mercosul em alcançar os dois principais objetivos de uma união aduaneira: liberalizar o comércio entre seus países-membros e adotar uma tarifa comum sobre as importações oriundas de terceiros países. O comércio intrabloco segue limitado por um sem-número de barreiras (das quais se destacam as crescentes restrições argentinas a produtos brasileiros) e alguns estudos estimam que a tarifa supostamente comum, na verdade, só é aplicada a cerca de metade das importações do bloco (a outra metade continua submetida a tarifas nacionais, diferentes em cada um dos países-membros). Quando de sua criação, porém, pretendia-se que o Mercosul cumprisse ainda um terceiro objetivo: o de assegurar que a abertura comercial dos anos anteriores não viesse a ser desfeita no futuro. Uma análise do bloco ao longo dos últimos anos mostra que, também nesse aspecto, o Mercosul falhou. Precisamos saber por quê.
Até 1990 a indústria nacional praticamente não enfrentava competição estrangeira alguma: importar só era permitido quando a mercadoria a ser importada não tinha similar nacional e, mesmo nesses casos, as tarifas eram usualmente proibitivas, em especial para bens de consumo. Em 1990, como é amplamente sabido, o governo Collor promoveu substancial alteração desse quadro, reduzindo tarifas e eliminando a necessidade dos infelizes "exames de similaridade" para um grande número de mercadorias. A indústria brasileira foi obrigada a inovar e reduzir custos e passou a poder importar máquinas e equipamentos antes inacessíveis; como resultado, a produtividade da economia brasileira deu um salto - após uma década de estagnação, passou a crescer cerca de 7% ao ano a partir de 1991. Mas como garantir, à época, que essa abertura não viesse a ser revertida? Como garantir que os atores prejudicados pela abertura - empresários e trabalhadores ineficientes, avessos à inovação e à concorrência - não viessem a convencer futuros governantes a restabelecer o regime comercial praticamente soviético que vigia até 1990? O Mercosul foi, em parte, uma resposta a esse problema.
Ao constituir o Mercosul, o Brasil abdicou do direito de decidir seu próprio regime comercial: em 1.º de janeiro de 1995 o Brasil passou a depender da aprovação de Argentina, Paraguai e Uruguai para poder alterar suas tarifas de importação. Dessa forma o Mercosul foi, ao menos parcialmente, uma tentativa de cristalizar e proteger a abertura que havia sido empreendida até então - estratégia a que os cientistas políticos dão o nome de lock in e é adotada por governos do mundo todo, em diversas arenas (estratégias desse tipo podem ser empregadas na consolidação de reformas financeiras, políticas, etc.). No caso do Mercosul, porém, essa estratégia não tem funcionado: a tarifa de importação média aplicada pelo Brasil vem aumentando, resultado da crescente captura do governo pelo lobby protecionista de fabricantes de brinquedos, calçados, têxteis e diversos outros setores. Parte da abertura levada a cabo em 1990 foi desfeita. Por que falhou o Mercosul em prevenir esse retrocesso?
A resposta é que a estratégia de lock in só dá certo quando se amarra a política comercial própria à política comercial de vizinhos interessados em aprofundar (ou ao menos em não reduzir) seu grau de integração à economia mundial. Certamente não é o caso da Argentina, que a todo instante descobre em sua indústria doméstica um novo "setor estratégico" a ser agraciado com formas diversas de proteção comercial (tarifas, dificuldades na emissão de licenças de importação e medidas compensatórias contra supostos casos de concorrência desleal, para citar os instrumentos mais comuns). O último "setor estratégico" identificado pelos argentinos é a fabricação de toalhas e lençóis, o que não nos permite outra conclusão senão a de que nosso principal sócio no Mercosul está disposto a replicar o regime comercial semiautárquico que vigorou no Brasil até 1990. Um sócio desses, naturalmente, não tem o menor interesse em bloquear as invectivas protecionistas do Brasil - ao fazê-lo, estaria deslegitimando suas próprias ações. Prevalece, portanto, a lógica da acomodação: o Brasil não se opõe ao protecionismo argentino, a Argentina não se opõe ao protecionismo brasileiro e, assim, ambos os sócios ficam livres para ceder à pressão de seus respectivos setores ineficientes por tarifas maiores. É uma espécie de pacto da mediocridade.
Uruguai e Paraguai, é verdade, são mais moderados e por vezes relutam em ratificar propostas argentinas e brasileiras que resultem em mais protecionismo. Com frequência cada vez maior, porém, essa relutância é apenas um jogo de cena para extrair benesses do Brasil e da Argentina em outras esferas. Por meio do Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul (Focem), estabelecido em 2005, por exemplo, o Brasil destina anualmente US$ 70 milhões a "projetos de desenvolvimento" paraguaios e uruguaios. Iniciativas como essa dão ensejo ao toma-lá-dá-cá bilateral: é fácil obter o assentimento de Uruguai e Paraguai a qualquer alteração tarifária quando se tem tamanho saco de bondades à disposição. O cidadão brasileiro fica no pior dos mundos: arca com as consequências de tarifas maiores, como consumidor, e com o custo de aprovação dessas tarifas, como contribuinte. Leva o tiro e ainda custeia a bala.
O Mercosul, portanto, fracassou em seus três objetivos fundamentais. A adesão da Venezuela, caso seja ratificada pelo Parlamento do Paraguai (já o foi pelos Parlamentos dos outros três sócios), em nada contribuirá para a reversão desse quadro. Nesse cenário, não há justificativa para a permanência do Brasil no bloco.
*THIAGO MARZAGÃO, DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE OHIO, PERTENCE À CARREIRA DE ESPECIALISTAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO GOVERNAMENTAL DO GOVERNO FEDERAL, DA QUAL ESTÁ TEMPORARIAMENTE LICENCIADO.
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