Os mocinhos, os vilões e as mães
RUTH DE AQUINO
REVISTA ÉPOCA
Nada como uma semana de guerra para cair na real. Quando a realidade envolve armas, drogas e fortunas, pisamos em terreno movediço. Por que uma minoria podre de policiais bandidos quebra casas de moradores e rouba suas economias? Por que traficantes teriam fugido até em viaturas da polícia? Por que o Exército não quer deixar seus militares no Rio, sob a alegação de temer corrupção? Num conflito dessa proporção, os comandantes precisam monitorar com mão forte a fronteira entre a virtude e o vício, a ordem e o abuso.
O Rio de Janeiro se orgulha, sim, da invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão. A pesquisa do Ibope só confirma o que vemos a olho nu nas ruas: 88% da população confia nas últimas ações do governo, 82% confiam na polícia, mas muitos não se sentem seguros. E é natural. Não dá para se sentir seguro se, dos 600 traficantes que estariam nas favelas invadidas, só 124 tinham sido presos até a sexta-feira. Já há notícia de assaltos a casas com reféns em outras áreas, perto da maior favela do Rio, a Rocinha. Se houve um golpe de R$ 100 milhões nas finanças do Comando Vermelho, se foram tirados, dos traficantes foragidos, suas casas, sacos de dinheiro, fuzis, bazucas, toneladas de drogas, o que mesmo eles vão fazer durante o verão?
“Eles vão partir para outros crimes”, disse o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, em longa conversa. “Mas temos de proteger o ‘Chico’ e o ‘Francisco’.” Era uma referência ao pobre e ao rico. Ao visitar o Alemão na quarta-feira, Beltrame foi abordado por uma senhora que contou como sua casa foi arrombada, revirada e roubada por policiais. “Eu me comprometi com ela. Vou atrás dos culpados. Temos de ressarcir danos e prejuízos. Minha vontade é encontrar os culpados e expulsá-los de forma exemplar, diante da tropa formada”, afirmou Beltrame, com raiva na voz.
Aumentar os salários dos policiais resolve, já que são tão mal pagos? “Ajuda, mas não resolve. É preciso levar em conta toda uma história de caráter, criação, caldo cultural”, diz Beltrame. E dá um exemplo: o Rio Grande do Sul tem o segundo pior salário de policiais no Brasil, e a corrupção lá é muito menor que em outros Estados. No Rio, diz Beltrame, “não posso trazer policiais de Marte nem de Santa Catarina”. Policiais do Rio devem ganhar agora 100% de aumento, mas isso ainda é considerado pouco.
Se salário alto bastasse para acabar com a corrupção, não haveria políticos e empresários ladrões. “Tem gente que se especializa em Direito Tributário em Harvard e manda para as Ilhas não Sei o Quê um dinheiro que daria para fazer todas as UPPs do Rio”, diz Beltrame.
Quando o Rio aderiu em massa à ação conjunta das Forças Armadas, Bope, Core, PM e Polícia Civil, houve quem classificasse o apoio de ingênuo. Ninguém de bom-senso acha que, entre as forças da ordem, só existam mocinhos. Mas, felizmente, acabou a visão romântica de que traficante armado é vítima. Ficou claro como a população das favelas está subjugada a tribunais sumários, ao silêncio do medo e a um regime de terror.
“O cerco no Alemão teve problema? Teve”, disse Beltrame. “Prender 50 traficantes é importante. Mas quero crer que muitos que fugiram, de chinelo e sem arma, não voltarão para o crime. Para mim, o foco é a retomada do território. Só isso me permite prestar serviço e dar esperança a mais de 300 mil pessoas.”
O tráfico não vai acabar. A corrupção não vai terminar. Mas a imagem das mães entregando seus filhos traficantes à Justiça, para que eles paguem por seus crimes e continuem vivos, foi uma cena inédita e emocionante no Rio. Muitos bandidos estão cansados do crime e querem levar uma vida digna, de trabalho honesto, sem violência (leia a reportagem). Para eles e para seus filhos, existe futuro. O Estado precisa dar a esses a chance de se redimir. Os presídios, além de superlotados, não podem misturar criminosos sanguinários com bandidos recuperáveis. Está na hora de discutir a ressocialização de quem embala a droga em casa por R$ 10 e gravita em torno do tráfico – em vez de jogar esse aprendiz em cadeias que são faculdades do crime.
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