Ora, pois
Manoel Carlos
REVISTA VEJA - RJ
são lágrimas de Portugal!
De Portugal sinto saudade até de lugares onde nunca estive e de pessoas que não conheci. Tenho pelo país, sua história e cultura, um grande amor, sentindo-me mesmo, muitas vezes, dividido na minha nacionalidade original. Tanto é assim que fiz questão de me tornar cidadão português como segunda opção. Hoje tenho cartão de identidade e passaporte de além-mar. Sou um luso-brasileiro com muita honra, e é esse o sangue que me corre nas veias, por parte dos meus avós paternos.
O trabalho para conseguir todos os documentos que me possibilitaram essa segunda cidadania coube à minha mulher, que fez duas viagens a Portugal exclusivamente para esse fim. Mas ela não se queixou, não. Voltar à boa terra e depois estender essa viagem a outros países europeus é sempre um deleite, principalmente para a Bety, que se sente em casa quando entra num Boeing. Costumo dizer que ela é como retirante, que dorme com a mala debaixo da cama, sempre pronto para os eventuais e ao mesmo tempo corriqueiros deslocamentos.
Uma das minhas maiores admirações pelos portugueses é o laço estreitíssimo que eles criam com a cultura e a história — em tudo o que fazem. Não abrem mão do que herdaram e sentem muito orgulho do rico passado de navegadores.
E ao imenso e possível oceano
ensinam estas Quinas, que aqui vês,
que o mar com fim será grego ou romano.
O mar sem fim é português.
E a ligação com a cultura aparece em tudo. Vejam um exemplo: tenho o passaporte português nas mãos. O que ilustra esse documento oficial, o mais importante de que um país dispõe, são desenhos que retratam dois ilustres patrícios: Camões e Fernando Pessoa. Fico pensando como seria gratificante para nós, brasileiros, termos em nosso passaporte ilustrações que mostrassem a efígie de Machado de Assis, por exemplo. Mas não temos essa preocupação com a cultura e o conhecimento. Talvez a burocracia brasileira não considere os romancistas e os poetas suficientemente sérios e responsáveis para figurar nos documentos oficiais. As cédulas atuais reproduzem sempre a mesma efígie, acompanhada de onças, cobras e pássaros da nossa fauna. Passei os olhos pelas novas notas que estão em gestação na Casa da Moeda: de 1 a 100 reais, nenhuma figura brasileira de realce. As ilustrações serão apenas de fortes militares, igrejas, as linhas curvas da arquitetura de Brasília e coisas do gênero. Não há um poeta, um pintor. Esse vazio de representações culturais é bem um sintoma da pobreza brasileira, que começa e acaba no dinheiro propriamente dito.
Leio que o Canecão foi retomado pela universidade, proprietária do terreno, ao que me parece. Assim que li a notícia, lembrei-me de Amália Rodrigues, a maior fadista portuguesa, que ali cantou na década de 70. Eu a ouvi pessoalmente mais de uma vez. Ela se casou com um brasileiro, veio muito ao nosso país e aqui, se não me engano, gravou seu primeiro disco. Amália era a cara de Portugal. Recordo-me dos versos do poeta José Régio, transformados por ela em um fado inesquecível:
O Fado nasceu um dia
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava
na amurada dum veleiro.
O Fado nasceu um dia
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava...
Bênção, vô!
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