Uma definição do ex-presidente Campos Salles quando, ainda deputado em 1895, preocupado com “os perigos para o regime da liberdade que adotamos”, da regulamentação de texto constitucional que permitiria a intervenção do poder central nos estados, pode resumir a essência dos debates sobre uma eventual intervenção no Distrito Federal.
Se é possível um corpo político ter coração, eu direi que neste momento estamos tocando no próprio coração da República brasileira”, advertiu Campos Salles, ferrenho defensor da autonomia dos estados na República recéminstalada no país.
De fato, a intervenção federal pode ser comparada a uma intervenção cirúrgica no corpo político do país, quando o seu coração está gravemente enfermo. Por isso, a intervenção em qualquer dos estados federados paralisa os trabalhos do Congresso Nacional, que não pode fazer emendas constitucionais enquanto durar a intervenção.
Uma intervenção na capital do país, então, tem a dimensão política dramatizada, e por isso é tão difícil de ser adotada, além das dificuldades técnicas. Mas pode também representar uma afirmação de valores democráticos e republicanos.
A intervenção federal pode ser feita em qualquer dos poderes, Legislativo e Executivo, de acordo com condições rígidas previstas na Constituição. Mas a regra é a não intervenção, tanto que o artigo 34 que fala do tema começa com a advertência: “A União não intervirá nos estados nem no Distrito Federal, exceto para ...”.
No caso atual, como num anterior, em que era pedida a intervenção federal no Espírito Santo, à época dominado pelo tráfico de drogas, o pedido é de intervenção nos dois poderes, Legislativo e Executivo, o que dificulta a execução da medida.
O caso do Espírito Santo em 2002 é semelhante ao de Brasília no que diz respeito ao envolvimento da maioria da Assembleia Legislativa (no caso de Brasília, da Câmara Distrital) com o crime organizado.
No caso atual, se não há envolvimento com o tráfico de drogas, há, no entendimento do procurador-geral da República, respaldado pelos diversos filmes que foram fartamente exibidos, o envolvimento de um grupo político majoritário em atos de corrupção.
De nada adiantará ao atual governador, Wilson Lima, ou a outro que o suceda, conseguir o apoio da maioria dos partidos para ter governabilidade se ela estará comprometida com a cumplicidade com a corrupção endêmica do sistema político local, assim como na ocasião, o apoio da Assembleia Legislativa do Espírito Santo dependia do aval do seu presidente, José Carlos Gratz, que chefiava o crime organizado no estado.
O então presidente Fernando Henrique Cardoso optou por uma “intervenção b r a n c a ” , p a r a e v i t a r o s transtornos políticos de uma intervenção formal, e uma “força-tarefa” da Polícia Federal foi designada para o estado, o que acabou surtindo o efeito desejado, desbaratando a quadrilha que comandava o estado e colocando Gratz na cadeia.
O governador Paulo Hartung deu prosseguimento à limpeza nos últimos oito anos, e hoje o Espírito Santo é um dos estados que mais se desenvolvem no país.
Enquanto aguardam o desenrolar dos fatos políticos na capital, tanto membros do governo federal quanto do Supremo debatem extraoficialmente o que fazer se a crise política recrudescer como unanimemente se espera, diante da fragilidade política do governador em exercício, deputado distrital oriundo do grupo político de José Roberto Arruda.
A autonomia política do Distrito Federal, concedida pela Constituinte de 1988, dificilmente será revertida pelo Congresso Nacional, o que obriga a que a solução política passe pela Câmara Distrital, totalmente contaminada.
Não é de se esperar, por isso, que ela eleja indiretamente um governador que venha a fazer uma limpeza ética na política.
Um interventor nomeado pelo presidente da República deveria ser um nome independente, suprapartidário, que pudesse comandar uma reforma dos hábitos e costumes políticos de Brasília.
Há entre os que decidem, e que residem em Brasília, a certeza de que, às vésperas de completar seus 50 anos, a capital não tem motivos para comemorações.
A decisão do Supremo Tribunal Federal pode vir a ser um estímulo para a recuperação da autoestima do Distrito Federal e, em consequência, uma sinalização para o resto do país.
Mas tem que ser uma solução que zere a pedra e favoreça um recomeço da atividade política na capital, evitando uma volta ao passado igualmente contaminado.
O Democratas vai ter que revelar uma capacidade política insuspeitada para se recuperar dessas crises todas em que se vê envolvido nos últimos tempos. Vacilou ao não expulsar imediatamente o governador José Roberto Arruda, por não ter condições políticas de fazê-lo ou por um cálculo político equivocado.
E errou também ao imaginar que poderia preservar o vice Paulo Octávio. De qualquer maneira, livrou-se dos dois, ao contrário de outros partidos, que não puniram os seus pares envolvidos em escândalos, sejam os mensaleiros e aloprados do PT — o caso mais recente de retorno aos quadros petistas é o do assessor de Mercadante, Hamilton Lacerda, apanhado com a mala cheia de dinheiro para comprar um dossiê contra o então candidato ao governo de São Paulo José Serra — sejam os envolvidos no mensalão mineiro do PSDB.
Com relação à única estrela do partido que restava, o prefeito Gilberto Kassab, a cassação de seu mandato por um juiz de primeiro instância, pelos motivos que já haviam sido descartados pelo Tribunal Superior Eleitoral quando analisou as contas de campanha do presidente Lula, é claramente uma arbitrariedade.
O estrago político só não é maior porque vários vereadores petistas foram também indevidamente cassados, o que coloca todos na mesma situação.
Mas o partido terá que ser muito assertivo em suas posições para se livrar da imagem pública de envolvimento em escândalos, e recuperar a força política para indicar o vice na chapa do PSDB.
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