Aqui, ó
O GLOBO - 25/02/10
Alguns gestos persistem mesmo depois de obsoletos. Pode-se imaginar um balé nostálgico de gestos que perderam a referência, flutuando no ar como balões sem dono. O gesto de acionar uma descarga de privada, por exemplo. Ainda se puxa uma corrente imaginária, o mesmo gesto usado para puxar a corda de um apito de trem. Hoje a mímica correta para “puxar a descarga” – e, pensando bem, para fazer um trem apitar – seria a de empurrar um botão. Mas quem a entenderia? O sinal internacional de “a conta, por favor” – uma caneta invisível escrevendo num papel subentendido – continuará a ser usado quando todas as contas saírem prontas do mesmo computador em que o garçom digitou o seu pedido
e aproveitou para botar um couvert a mais.
Alguns gestos seguem o desenvolvimento da técnica. Ninguém mais “disca” no ar com um dedo para representar um telefonema – embora ainda deva existir uns dois ou três que giram uma manivela saudosa junto ao ouvido. A simulação atual de telefone é o polegar e o mindinho estendidos ao lado do rosto, um gesto óbvio só agora adotado, pois levou quase tanto tempo para se desenvolver entre os homens quanto o dedão opositor entre os macacos.
Ainda se rodeia o dedo perto da têmpora para significar loucura embora o conceito de que loucura seja um redemoinho na mente esteja ultrapassado. Como dizer que alguém não é exatamente esquizofrênico mas paranoico com um forte componente depressivo de fundo neurosomático usando apenas um dedo? Melhor fazer como no pedido da conta: manter o gesto impreciso mas tradicional, que dispensa especificações. Mesmo quando escrever a mão for
tão desconhecido como, sei lá, puxar a descarga, os garçons o entenderão.
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