quinta-feira, janeiro 07, 2010

ROLF KUNTZ

Uma recessão diferente

O Estado de S. Paulo - 07/01/2010


Há um ano o Brasil atravessava o ponto mais fundo da recessão, a mais intensa desde o começo dos anos 80 e, ao mesmo tempo, a menos custosa socialmente. Durou apenas seis meses, mas em cada trimestre o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu em média 1,9%, bem mais que em qualquer das sete recessões anteriores, segundo o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos da Fundação Getúlio Vargas. O produto industrial diminuiu 12,2% no período e houve desemprego, mas a reativação logo começou. O consumo se manteve razoável. Em cada mês o volume de vendas do varejo superou o de um ano antes, de acordo com o IBGE. O aperto de cinto foi suave e o empobrecimento foi limitado. Não foi a marolinha prevista pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem um tsunami devastador. Foi uma experiência nova para o País e é importante saber por que a crise de 2008-2009 foi diferente das anteriores.

A diferença mais notável foi a situação das contas externas. Pela primeira vez o Brasil entrou numa recessão com reservas maiores que a dívida total, isto é, como credor líquido. Sobrou munição para o Banco Central ajudar as empresas na fase de maior escassez de crédito externo. A relativa solidez do balanço de pagamentos limitou a especulação cambial. O dólar subiu no início da crise, mas o movimento logo se inverteu. O estoque de reservas, US$ 207,5 bilhões em setembro, caiu até US$ 199,4 bilhões em fevereiro de 2009, mas em junho chegou a US$ 208,8 bilhões.

A valorização do câmbio ajudou a conter os preços. Em recessões anteriores, a especulação com o dólar havia criado pressões inflacionárias e imposto restrições à política monetária. Desta vez a evolução cambial teve um efeito favorável aos consumidores.

As contas públicas, embora mais vulneráveis que no ano anterior, ainda permitiram ao governo a concessão de estímulos fiscais a alguns setores. Isso contribuiu para sustentar as vendas de automóveis e, depois, de eletrodomésticos e de material de construção. Houve desemprego no setor automobilístico, mas o efeito da crise teria sido presumivelmente mais severo sem os cortes de impostos. Em recessões anteriores, incluída a de 2003, a situação fiscal era mais apertada e as pressões inflacionárias derivadas do câmbio haviam forçado a alta de juros. Desta vez, a inflação moderada permitiu a preservação dos ganhos salariais acumulados até o início da crise.

Todas essas condições favoráveis foram produzidas por um longo trabalho de arrumação econômica. Já na crise de 1999, resultante de um forte desajuste cambial, as pressões inflacionárias foram contidas com rapidez. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) aumentou 8,94%, bem longe do resultado catastrófico previsto em janeiro por muitos economistas e empresários.

Naquele ano foi inaugurado o regime de metas de inflação, mas isso não teria funcionado se não se houvessem restabelecido as condições de execução da política monetária. A disciplina fiscal imposta aos Estados, a partir da renegociação de suas dívidas, foi parte essencial dessa transformação. Esses fatores possibilitaram em 2003 a rápida superação dos problemas surgidos durante a campanha eleitoral do ano anterior.

Em nenhuma recessão desde o começo dos anos 90 houve problemas sérios de alimentação. Muitas pessoas podem dar pouca importância a esse ponto, hoje, mas não quem se lembra da recessão de 1981 a 1983.

A fome foi a marca mais terrível daquele período, não só por causa do desemprego, mas também das condições precárias de abastecimento. As primeiras medidas para modernização da agropecuária brasileira haviam sido tomadas nos anos 70, mas os efeitos ainda não haviam aparecido.

Erros graves ainda seriam cometidos pelos governos, como o ridículo congelamento do preço da carne na entressafra de 1986, durante o Plano Cruzado. Mesmo besteiras desse calibre, no entanto, foram insuficientes para deter a transformação. Em 1981 a alimentação pesava 37,7% na formação do Índice de Preços ao Consumidor da Fipe-USP. Em 1990 essa participação foi revista para 30,8%. Em 1998, para 22,7%. Essa mudança é explicável principalmente pelos enormes ganhos de produtividade da agropecuária brasileira. A comida no Brasil tornou-se uma das mais baratas. Desde o fim dos anos 80 esse fator tem atenuado o custo social das recessões. Isso teria sido impossível sem muita pesquisa, muito capital investido e muita preocupação com a competitividade.

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Rolf Kuntz é jornalista

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