sexta-feira, janeiro 20, 2012

Imigrantes - ARTHUR DAPIEVE


O GLOBO - 20/01/12


Uma chance para o 'eu não disse?'


Existe um prazer humano que rivaliza com a prática de sexo animalesco e com a recepção de uma coçadinha nas costas. É a possibilidade de soltar um "eu não disse?" na hora certa. Do marido para a mulher: "Eu não disse que o macarrão ia virar papa?" Da mulher para o marido: "Eu não disse que o carro não ia caber nessa vaga?" Da amante para o amante: "Eu não disse que passar a perna por trás do meu pescoço ia dar câimbra na batata?" Do beque para o goleiro: "Eu não disse que ele ia bater no canto esquerdo?" Do assessor para o ministro: "Eu não disse que ia dar merda, seu Bezerra?"

Se a música do Rappa explica que "a vitória de um homem às vezes se esconde num gesto forte que só ele pode ver", o prazer do "eu não disse?" pode ser poeticamente traduzido por "a vitória de um homem às vezes está numa frase dita baixinho que o outro pode ouvir". Há várias implicações em dizê-la: o outro que se fez de surdo é um teimoso; nós entendemos mais da missa do que o suposto vigário; nós temos até o dom da presciência. O colunista é um ser humano como outro qualquer, acredite, e também se regozija quando pode escrever "eu não disse?". É chegada uma dessas ocasiões.

Há quase dois anos, precisamente no dia 21 de maio de 2010, eu publiquei aqui um texto intitulado "Novos gringos", que perguntava, no subtítulo, "E se a maré da imigração virar?" Nele, aventava o que me parecia uma hipótese já bastante razoável. Em síntese, escrevi o seguinte (no sétimo parágrafo): "Se prolongada, a conjunção de taxas de crescimento da ordem de 8% do PIB aqui e de profunda crise econômica na Europa - com o consequente desmonte ao menos de parte do Estado de Bem-Estar Social - já seria por si só propícia a novas ondas migratórias. A nossa estagnação educacional, porém, oferece oportunidades quase irresistíveis de trabalho."

Entre as mensagens que recebi na ocasião estava a de um economista que chamava a minha hipótese de estapafúrdia diante do dado X e de projeção Y. Tivesse eu guardado o e-mail dele, teria desde então pensado em enviar-lhe mensagens cheias de "eu não disse?", conforme as notícias davam conta de que voltara a crescer o número de estrangeiros ingressando no Brasil, fazendo com que o país deixasse de ser exportador para ser (de novo) importador de mão-de-obra. E olhe que minha hipótese estava errada em três pontos menores: nossa taxa do crescimento do PIB caiu para um terço daquilo, aproximadamente; não foi só a Europa que voltou a contemplar o país como uma espécie de Terra Prometida; e os novos imigrantes não são apenas trabalhadores qualificados. A rigor, as três coisas também seriam previsíveis.

Não havia nenhuma forma superior de inteligência nem muito menos de presciência envolvida no meu texto de 2010. Um pouco como o protagonista do seriado "Psych", um charlatão que ajuda a polícia se fingindo de médium, eu prestara atenção em detalhes óbvios. Olhara em volta - coisa que economistas nem sempre fazem - e lembrara que os movimentos migratórios ocorrem, desde que o mundo é mundo, de regiões menos prósperas para regiões mais prósperas (e o Brasil não estava fadado a estar eternamente entre as primeiras). Hoje, estamos testemunhando um novo desembarque de portugueses e uma entrada de haitianos pelo Acre. Tudo leva a crer que isso seja apenas o começo. Ciente do nosso apagão educacional, que se espraia na mesma medida em que cresce a economia, o governo pensa em flexibilizar as kafkianas exigências para a concessão de vistos aos trabalhadores qualificados.

Há claras implicações econômicas nisso, implicações que, mais cedo ou mais tarde, terão complexas implicações políticas (como estrangeiros oriundos de países menos desiguais pressionando por mais avanços sociais aqui ou políticos demagogos catalisando o ressentimento de brasileiros desempregados contra estrangeiros bem colocados). No entanto, há ainda implicações culturais. A música de Inglaterra e França, antigas potências coloniais que receberam grandes levas de imigrantes depois da Segunda Guerra, se beneficia da presença de africanos e asiáticos. Nossa cultura já é rica, certo, justamente por causa das misturas passadas. Misturar mais será sensacional. Que novas formas de arte poderão surgir? Que novos ritmos miscigenados teremos?

O leitor menos ocasional sabe que, entre outros pares de temas complementares, dois têm sido recorrentes aqui: o da imigração/xenofobia e da educação/ignorância. No momento, ambos claramente convergem no Brasil. Como neto e bisneto de velhos imigrantes, vejo com enorme simpatia a chegada de novos imigrantes. Não apenas os oriundos de países que ora passam por dificuldades econômicas, mas também de cidadãos dos outros Brics. Aqui em Laranjeiras, já é possível ver uma família chinesa ali, um técnico em computação indiano acolá. Que criem raízes.

Registrei, na coluna passada, uma versão truncada do bilhete da presidente Dilma Rousseff ao acadêmico Ivan Junqueira. O certo é: "Meu caro Ivan, a vida, como você escreveu, é melhor que a morte; acreditar nisso nos dá força para compartilhar cultura e construir um país melhor." O contrário ("a morte é melhor que a vida") implicaria termos uma suicida no Planalto. Não é o caso.

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