Tecnologias ameaçadoras não são coisa do futuro
É curioso como obras de ficção científica frequentemente tratam o ser humano como vítimas que são subjugadas por suas criações de perder o controle de experiências científicas ou tecnológicas. É essa a ideia subjacente em séries de cinema como "O Exterminador do Futuro", em que androides futuristas tentam destruir um lider rebelde antes mesmo de ele nascer, ou "Matrix", no qual os seres humanos vivem um sonho perpétuo, enquanto servem de fonte de energia para um mundo real controlado por máquinas.
Essa abordagem pode render filmes divertidos para se ver comendo pipoca, mas não leva em consideração um ponto inquietante - o de que o maior risco da tecnologia, pelo menos por enquanto, não que é formas superiores de inteligência artificial entrem com conflito com a humanidade para destruir a civilização. A ameaça vem da capacidade que a tecnologia proporciona para que um indivíduo se vire contra outro, a fim de defender o que considera seu tipo ideal de civilização.
É o que torna a série "Black Mirror" tão instigante quanto, às vezes, difícil de assistir. Perto de chegar à quinta temporada, o seriado britânico produzido pela Netflix já abordou a obsessão das pessoas pela popularidade nas redes sociais, as consequências do uso indevido dos sistemas on-line de segurança e o papel exagerado que os aplicativos de namoro podem ganhar no relacionamento de um casal.
Ao mostrar tecnologias que ainda não estão disponíveis - e que não se sabe se estarão algum dia - os enredos enfatizam a possibilidade de um futuro nada promissor. O que dá medo, porém, não é o que pode vir a acontecer. É o que as tecnologias disponíveis atualmente já permitem fazer, como se convivêssemos com protótipos de armas tecnológicas potencialmente destrutivas, à espera de que alguém que descubra como usá-los para fins secretos.
É aterrador ver como os cães robóticos que caçam seres humanos no episódio "Metalhead", em meio a um cenário apocalíptico, lembram os robôs em forma de animais que estão sendo produzidos pela Boston Dynamics - empresa comprada pelo Google em 2013, e quatro anos mais tarde vendida para o grupo japonês SoftBank.
Ou como a obsessão por ser aceita na mídia social faz a protagonista de "Queda Livre" enfrentar um inferno para chegar ao casamento de uma amiga, no qual deixa de ser bem-vinda a um certo ponto da trama, na espectativa de recuperar pontos perdidos de popularidade.
O episódio me lembrou uma dupla de garotas que vi recentemente em frente de um shopping na zona Sul de São Paulo. Com o celular nas mãos, elas passaram um longo tempo fazendo "selfies" diante de uma das mais sofisticadas joalherias da cidade. Depois da sessão fotográfica, entusiasmadas com as imagens que obtiveram com a marca ao fundo, foram embora. Sem sequer entrar na loja ou xeretar na vitrine. A foto para as amigas já valeu.
Outro episódio, "Odiados pela nação", aborda o inverso da popularidade - aqueles que se tornam vítimas de campanhas de ódio e difamação por parte dos chamados "trolls" ou "haters". No enredo, que também tem como elementos o uso indiscriminado de drones e a vigilância dos cidadãos pelo Estado, as pessoas escolhem quem elas querem ver mortas. A primeira vítima é uma jornalista muito impopular. Quando a delegada pergunta a uma professora primária porque ela entrou no site e participou da votação, ouve como resposta algo do tipo "mas é só a internet", como se uma ameaça virtual fosse pouca coisa.
Quatro anos atrás, entrevistei uma psicóloga do Rio de Janeiro que teve sua vida completamente alterada depois que a denunciaram na internet, injustamente, por maltratar gatos em seu condomínio. Só nos dez primeiros dias depois da acusação ela recebeu cerca de mil manifestações no Facebook. Alguns desejavam sua morte e houve quem sugerisse que o endereço dela fosse publicado para que pudessem se vingar.
Seria reconfortante pensar que a maioria das pessoas que desejaram acabar com a psicóloga não tenha, de fato, pensado nisso. O mais razoável é que tenha ocorrido uma explosão momentânea da ira popular. Mas é cruel que as pessoas pensem que insultar e ameaçar alguém que nunca viram possa ser considerado algo sem consequências só porque se dá no meio on-line. Ou, como diz a personagem da série, "é só internet".
A ameaça à privacidade tem se expandido porque a tecnologia avança mais rapidamente que a legislação, o que cria brechas para a prática de crimes que ainda não são caracterizados como tal.
Um dos episódios mais desconcertantes é o de um adolescente que vira alvo de chantagem de hackers que ameaçam publicar um vídeo comprometedor se ele não seguir as instruções dadas. Isso inclui assaltar um banco e, ao fim, matar outra pessoa, que também é alvo de extorsão. Spoiler: ao fim, é revelado que o delito do rapaz não é tão leve quanto parecia e que, mesmo tendo cumprido as ordens, o vídeo é liberado.
O enredo remete a um caso investigado anos atrás pelo FBI, a polícia federal americana, depois de uma garota se queixar de que alguém conseguia vê-la dentro de sua casa. Uma noite, o invasor interceptou a conversa que a vítima estava tendo com seu namorado e, quando ela tentou chamar a polícia, o hacker a ameaçou, descrevendo como ela estava vestida.
Meses mais tarde, descobriu-se que a pessoa invadira a câmera do notebook da vítima. Por isso conseguia vê-la. Mas não estava nem perto da casa da garota. O invasor, descobriram os investigadores, era um imigrante latino que vivia em uma cadeira de rodas, na casa de uma tia.
A análise mostrou que o hacker aprendera as técnicas de invasão na própria internet e que controlava a vida de dezenas de pessoas, inclusive moradores de outros países. Vítima de bala perdida, o hacker disse que queria tornar as pessoas infelizes porque era assim que se sentia. Se tinha dias maus, porque os outros não teriam? O juiz o condenou à cadeia.
Parece ou não, um caso típico de "Black Mirror"?
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