terça-feira, maio 28, 2019

Dança com lobos - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 28/05

Alguém acredita que, escondendo as presas, os lobos deixam de ter fome?


Ter coragem é uma das virtudes principais. Assim falava Aristóteles. E assim falo eu, que sempre pensei no assunto de forma obsessiva.

Vamos imaginar que era possível recuar até 1940. Eu, gentio e ariano, estaria na Alemanha. Ou na Polônia. Ou na Hungria. Tudo lugares infrequentáveis.

Perante a perseguição nazista aos judeus, estaria eu disposto a arriscar a pele para ajudá-los? Para escondê-los? Para alimentá-los?

Aqui entre nós, é a única questão que interessa a um nível pessoal. Sabemos que existiram monstros no Holocausto. E também sabemos que existiram heróis —300 mil judeus seriam salvos pela ação individual desses heróis.

Mas a vida não é feita de anjos ou diabos. É feita de pessoas comuns —a maioria. Existe uma literatura vasta sobre a ética dos “bystanders”, os observadores, os que ficaram a olhar —ou, pelo contrário, que desviaram o olhar— quando os seus vizinhos desapareciam a meio da noite.

E, entre os “bystanders”, não é possível jogá-los a todos na mesma sacola de culpabilidade moral. Anos atrás, David Jones publicou o seu “Moral Responsability in the Holocaust” e encontrou três grupos.

Primeiro, os que tiveram justificação para não ajudar (sobretudo alemães ou poloneses que temiam pela sua vida e pela vida da sua família). Seria indigno julgar a atitude dessas testemunhas aterrorizadas.

Depois, existem os que tiveram fraca justificação para não ajudar (populações civis que viviam fora do vespeiro alemão-polonês-húngaro e que poderiam ter feito mais). Falamos da maioria da população europeia, incluindo aqui países neutros como Portugal ou Espanha.

Finalmente, existem aqueles que não têm justificação para não terem ajudado (foram covardes, indiferentes ao sofrimento alheio ou simplesmente cúmplices).

Alguns, aliás, chegaram a tirar fotos: em Amsterdã, até o dia 6 de outubro, uma exposição no Museu Nacional do Holocausto apresenta esses retratos. Retratos banais, tirados por gente banal, que imortalizou em imagem as vítimas desse tempo.

Algumas das fotos foram tiradas atrás do vidro de uma janela, sei lá com que estado de espírito (medo? terror? curiosidade?). E as vítimas, do lado de fora, alinhadas para transporte, alinhadas para um triste destino. Que faria eu? E que faria o leitor? Tiraria fotos? Ou estaria pronto para ajudar por outros meios?

A pergunta não é meramente teórica. Nem anacrônica. Ela regressa sazonalmente para nos testar. Um exemplo: informa o The Guardian que um comissário do governo alemão aconselhou os judeus do país a não usarem o quipá em público. Não é mais prudente.

As intenções do sr. Felix Klein são meritórias: o antissemitismo cresce na Alemanha (e na União Europeia) de forma acentuada. Usar o quipá ou qualquer outro símbolo judaico é um “convite” para os crimes de ódio.

Moral da história: a mesma Alemanha que obrigava a população judaica a identificar-se em público com simbologia adequada opta agora por aconselhar a invisibilidade. Em ambos os casos, o que falha?

Precisamente: a vontade e a capacidade políticas de proteger essa comunidade pela força do Estado e da lei. Sem compromissos de qualquer espécie. E até quando?

Sim, até quando essa espécie de covardia moral é sustentável? Será que alguém acredita que, fechando os olhos e escondendo as presas, os lobos deixam de ter fome?

Essas perguntas são decisivas no momento presente, quando o antissemitismo europeu é alimentado por três correntes ideológicas aparentemente distintas.

Pela extrema direita, que cresce eleitoralmente no continente (basta olhar para as últimas eleições europeias) e que só na Alemanha é responsável pela maioria dos crimes antissemitas.

Pela extrema esquerda, que retoma o espírito e a letra dos “Protocolos dos Sábios do Sião” (o infame documento forjado pela polícia czarista no século 19 para justificar os “pogroms” antissemitas) para denunciar um novo complô judaico para dominação do mundo pela força da alta finança.

E pelo radicalismo islamita, claro, que nunca deixou de ler os “Protocolos” (os reais) e de agir em conformidade —no Oriente Médio ou na Europa.

Ninguém sabe como teria agido em 1940 e nos anos seguintes, quando os exércitos do Terceiro Reich já cobriam o continente.

Mas não haverá desculpa para a inação de 2019, quando a paz reina ainda sobre nós. Teremos coragem? E teremos vergonha?

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

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