O GLOBO - 05/10
Deu na coluna “Gente boa” neste O GLOBO:
“O caso de Otto — o neto de 8 anos de Otto Lara Resende que é fã de Caetano Veloso e não poderia ir ao show do cantor, em outubro, por causa da classificação indicativa — sensibilizou o juiz Pedro Henrique Alves, da 1ª Vara da Infância e da Juventude. ‘Ele vai ao show’, diz. ‘Eu vou autorizar e gostaria muito de conhecê-lo pessoalmente, junto de seus pais’. Otto tem síndrome de down, e a música é a sua maior paixão.”
A princípio parece bacana. Mas traz algumas questões. Bem graves.
De saída, a questão permanente do autoritarismo que, de forma anticonstitucional, cerceia a liberdade de expressão no Brasil. A começar pela própria classificação indicativa — que não é indicativa, como se autodenomina, mas proibitiva mesmo. Censura disfarçada.
Por que cabe ao Estado decidir em quais eventos culturais os pais podem levar seus filhos?
A decisão deve ser da família — cada qual com seus valores morais. Ou o Estado se acha no direito de criar normas nesta área? Sim, se acha. Quer decidir até o que é “família”.
Estamos falando, neste caso, de MPB, nem é de teatro ou cinema, onde cabem discussões sobre linguagem. Mesmo assim, para se resolver em casa.
No Caetano & Gil haverá canções que a meninada já ouve, por exemplo, nas rádios, sem controle algum. Aliás, a criança que quer ir é justamente porque conhece e gosta do repertório.
Não faz parte do roteiro nenhum comportamento chocante no palco por parte dos dois septuagenários.
Para o Rock in Rio, com consumo de bebida alcoólica liberado e de maconha sem repressão alguma, bastava, corretamente, a presença dos pais.
Qual a lógica? O que Gil e Caetano têm de tão maléfico às criancinhas?
Finalmente: como cidadão e colaborador de muitas instituições que cuidam de toda sorte de desigualdade social, sempre entendi que a causa era justamente para que todos tenham o mesmo direito perante a lei.
Que os diferentes sejam tratados como iguais. Aqui não: cria-se um privilégio. Por que meus filhos menores também não podem frequentar o mesmo lugar que uma criança com síndrome de down? Que mensagem ficará na cabeça deles?
É porque os interessados têm acesso ao juiz? Simpatia pessoal? Ou esta decisão será validada para todas as crianças com algum tipo de necessidade especial (como se isso criasse prerrogativa)?
Que lição para as outras crianças que também adoram a dupla deixará a Vara da Infância com este preconceito ao contrário? Serão, agora estes, os discriminados, tratados de forma diferenciada diante da legislação, em nome de que princípio?
Se a simpática decisão do juiz é movida por piedade, só agrava a situação, pois envereda por um caminho que não costuma embasar a conduta das famílias: o que deve nos mover é a legítima e muito necessária luta pela igualdade na cidadania, e não o sentimento de pena.
É uma pena mesmo é ver uma decisão judicial baseada num indivíduo, e não na coletividade.
Ainda pode ser um bom exemplo em favor de um sociedade mais igualitária , se o juiz ainda liberar a entrada no espetáculo a todas as crianças — acompanhadas — sem qualquer avaliação baseada em características físicas ou mentais.
Luis Erlanger é jornalista e escritor
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