segunda-feira, janeiro 13, 2014

Como as democracias se mantêm vivas - MARCELO COUTINHO

CORREIO BRAZILIENSE - 13/01

Em Como as democracias acabam, o filósofo francês Jean-François Revel, um ex-marxista e posteriormente seguidor das ideias de Raymond Aron, profetizou no início da década de 1980 a derrota das democracias ocidentais para o socialismo.

Revel não foi o único. Um grande pessimismo contagiou o bloco liberal nesse período. Mas ao contrário dos prognósticos negativos, a democracia não só sobreviveu a tantos oponentes como prevaleceu no fim da Guerra Fria.

Até hoje existem mais ditaduras do que democracias no mundo. Não obstante, o regime liberal cresceu muito, alcançando, de acordo com institutos especializados, mais de 40% dos países.

Enquanto a democracia chega a lugares novos, muitas repúblicas pluripartidárias questionam-se. É o caso do Brasil. O paradoxo consiste no fato de que nunca tantos povos viveram sob as instituições democráticas como agora, ao mesmo tempo em que nunca a desilusão com essas instituições foi tão grande.

Adam Przeworski, autor de inúmeros livros sobre o tema, concluiu em seu mais recente Democracia e os limites do autogoverno, de 2010, que a insatisfação com o regime democrático está baseada em uma incompreensão de como a democracia funciona realmente.

Segundo o autor polonês, a democracia encontra dificuldades em atender a tudo que se espera dela, como o fim da pobreza e a participação ativa dos cidadãos na vida pública - ao contrário do que prometeram seus pais fundadores - porque vem associada ao capitalismo.

O comparativista, que por muitos anos foi professor da Universidade de Chicago, certamente não está defendendo uma recaída comunista, já ter sido ele próprio a decifrar em ensaios mais antigos a impossibilidade de liberdades políticas existirem em economias socialistas.

Przeworski está apenas demonstrando, mais uma vez com base em amplo estudo empírico, que a igualdade política formal estabelecida pela democracia não conseguiu eliminar as desigualdades econômicas e sociais, fazendo-as em alguns casos até mesmo aumentar.

O autor não vê alternativas e deixa para a imaginação futuras maneiras que possam contornar o problema. Os resultados das suas pesquisas desafiam teorias da justiça e outras postulações normativas que têm tentado solucionar a questão pelas próprias estruturas institucionais.

O pensador político liberal John Rawls, talvez o mais influente na passagem do século 20 para o 21, fundamentou sua teoria da justiça na ideia de que soluções constitucionais podem superar estruturas econômicas desiguais quando tomadas sob o "véu da ignorância" em um momento fundacional idealmente construído, isto é, quando os legisladores não fossem capazes de antecipar os efeitos das instituições por eles criadas sobre suas respectivas posições na sociedade.

Para Rawls, a justiça social se resume à igualdade de oportunidades e, dessa forma, nenhum interesse coletivo definido pelo governo ou qualquer outra entidade pode servir de justificativa para subtrair direitos e liberdades individuais consideradas invioláveis.

O debate teórico sobre democracia envolvendo o liberalismo revisitado, na linha da justiça de Rawls, e os limites do institucionalismo democrático, reconhecidos nos estudos de Przeworski, é da maior importância para o Brasil, neste momento com uma agenda de reforma política entreaberta.

A insatisfação que os brasileiros têm apresentado nas ruas e no dia a dia com relação à política representativa e o absoluto descrédito popular por qual passam nossas instituições democráticas são motivos mais do que suficientes para que este debate se desenvolva.

Assim como os céticos do passado, os pessimistas de hoje quanto ao futuro da democracia brasileira não devem ver suas profecias catastrofistas se realizarem. Mas, para que a democracia possa sair fortalecida e afastar hipóteses autoritárias, é preciso que ela se renove. Nada melhor para isso do que um ano de eleição, possivelmente acompanhado por mais protestos sociais.

Não é preciso que a democracia acabe para que voltemos a lhe dar valor. Mesmo para um grupo atualizado de marxistas, esse já é um regime considerado inegociável pelo menos desde o texto seminal do brasileiro Carlos Nelson Coutinho, publicado também nos anos 1980: Democracia como valor universal.

Em síntese, nenhuma insatisfação econômica, social, institucional ou de qualquer outra natureza pode servir de pretexto para destruir o pluralismo que já temos. Ao se reinventarem, as democracias simplesmente se mantêm vivas. Só é preciso que mudanças aconteçam sem repetir mais do mesmo.

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