O GLOBO - 02/10
Naquele encontro do bem-sucedido governador progressista com lideres estudantis, alguns altamente ambiciosos, outros tocados pela curiosidade, Frederico percebeu que era só o cara que falava. Falava alto, falava de modo pausado, falava simples; suas palavras seduziam todo mundo, mas ele não ouvia.
Frederico, meu amigo e também estudante de História, era o único inconformado. O não ouvir era um protocolo. Todo o grupo foi avisado por um ajudante de ordens que Frederico antipaticamente chamou de “puxa-saco profissional” que estávamos ali para ouvir, não para falar. O “governador” admitia somente perguntas rápidas e objetivas, jamais “questionamentos”.
E assim foi. “Os poderosos não ouvem!”, disse-me Frederico outro dia numa breve e arriscada visita que fez à minha casa em Niterói. Levou 3 ou 4 horas do Baixo Gávea ou do Alto Leblon (eu tendo a me confundir com as hierarquias dos bairros dessa cidade altamente democrática que é o Rio de Janeiro), onde reside. “No Brasil, uma prerrogativa do poder é não ouvir. Você pode medir numa escala: quanto menos espera, menos ouve, mais faz esperar, mais é capaz de prorrogar e mais fala — mais poder!”
“E Deus”, perguntei provocativamente, “ouve?”
“Ele recebe muitas mensagens. Mais do que os bilhões de interceptações da National Security Agency do governo americano, mas, pelo visto, em vinte ou trinta anos haverá um empate. E olha que, como Deus, eles têm um arsenal de armas de destruição em massa!” — ponderou um Frederico agora careca, trêmulo e totalmente míope.
“Como assim?”
“Você se lembra daquele nosso encontro com o governador nos anos sessenta? Pois então. Eles não respondem porque são envolvidos em pedidos e coagidos por favores. Recebem tantas mensagens que não têm como respondê-las. O volume de comunicação em rede os aprisiona a um perpétuo imediatismo. Sabem tudo, ouvem tudo, mas não têm tempo para escutar...”
“Como assim?” — reiterei.
“Deus, por exemplo, recebe milhões de pedidos de milagre e de perdão. Mas apenas dúzias de arrependimentos. Hoje rezam mais para o Diabo. Deus sofre com uma brutal indiferença. Já os poderosos recebem pedidos instrumentais de emprego e negociatas. Em geral, eles fingem e mentem, discursando sem parar.”
“Mas Deus escuta!”, disse uma voz pequenina que saía de dentro de mim e eu mesmo não sabia donde.
“Ah! Essa é a diferença!” — animou-se Frederico. “Deus sempre ouve os angustiados. Os que chegam no fundo do poço. Mas os políticos e os poderosos não ouvem — a menos que se sintam ameaçados.”
O mundo vai se acabando e nós falamos do trivial variado. Discutimos se vamos comer carne ou salada enquanto a temperatura da Terra está próxima do insuportável. Cientistas apelam aos poderosos e eles não ouvem.
Deveriam apelar para Deus por meio de um telescópio eletrônico?
Dick Ranger, cientista atômico e cosmógrafo internado num manicômio em 1955, no estado de Oklahoma, propunha que Deus seria visto não por telescópios, mas por microscópios. Ele estaria no infinitamente pequeno e não no grandiosamente enorme. Seria o caso?, pergunta o meu lado adolescente que guardou essa possibilidade de um Gibi. Afinal, Deus estaria no fundo invisível de cada um de nós. Tão pequeno que jamais seria visto ou ouvido. Sua imagem como um ser enorme e abrangente é uma óbvia projeção do poder, nosso imenso poder tecnológico com seu lado construtivo e destrutivo. A conectá-los, há uma liminaridade positiva que junta o corpo com a alma e uma outra, negativa, que engendra a indiferença ou o nosso famoso e humaníssimo “deixa prá lá...”
Seria o tal Leviatã um mero dragãozinho de livro de Harry Potter?
Que ninguém, contudo, se iluda. O alta temperatura revela a agonia de uma Terra torturada pelos seus filhos.
E como todos estão tão ocupados e presos às suas subjetividades — falamos, fazemos e planejamos, mas não ouvimos.
“Como salvar um mundo que jamais teve uma alma?”, repete Frederico. “Se as ideias nada mais são — como dizem os mestres da sociologia — do que uma representação de interesses, então o Deus dos Puritanos que inventaram o capitalismo sem querer exprime a irracionalidade e o anonimato do mercado. Se Nietzsche falava do cristianismo como um mero reflexo do ressentimento dos escravos, seria preciso avançar mais na destruição da Terra para que ela possa ser salva. A gente só ouve depois do desastre.” Frederico — meu velho ex-colega e companheiro de pesquisa — cala-se e toma um gole de cerveja.
Sim, mas talvez antes do fim inexorável de tudo, como sábia e melancolicamente diz Lévi-Strauss no final das suas extraordinárias “Mitológicas”, apareça o inesperado decorrente de todos os nossos “projetos individuais”, como gostava de dizer um saudoso Gilberto Velho.
E, dessas contradições, talvez nos venha a roupa para esse Homem que se vê cada vez mais nu.
Um comentário:
Talvez a verdade seja de o homem vive vida eterna. Não tem terra e sua vida nunca encerra. Não inicia. Não mente. Não fala a verdade. E não erra. O homem não tem pernas. Então também não existe a serra. E Cristo não poderia falar da montanha. Buda, das chamas. Maomé, do sopé. O homem não está. O homem é. A família sagrada foi apenas um Do – Ré – Me – Só – Lá - si Dó. Captou um mundo, um conto de menina. Mais um conto da esquina. Com a ajuda dos três reis Midas, Movimentou a estrela (de Davi), A partir dali, Pães se multiplicaram, Corações acordaram. E o burrinho virou escravo. Não queria ser rosa. Mas queria ser cravo. Deu um tranco que só vale por aqui. Onde moras é lugar de Piqui. Bebidas com assai. Tolices, e vai por aí...
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