O Estado de S.Paulo - 02/10
Traído pelos embargos infringentes, o sistema processual brasileiro saiu do armário outra vez. Após extensas discussões sobre a Ação Penal 470, observadores procuram compreender o sentido de um dos recursos mais esotéricos de nosso Judiciário. É improvável que outro recurso tenha atingido, rápido assim, tamanha popularidade no jargão político nacional (o que não se deve à sua excentricidade, e sim à transcendência política do caso).
Segundo os pensadores do processo, os embargos infringentes buscam submeter uma decisão colegiada não unânime a uma rodada deliberativa extra dentro do mesmo tribunal. Descontadas as especificidades que qualificam os requisitos desse recurso nos tribunais de segunda instância e nos tribunais superiores (como STF e STJ), levar o desacordo a sério é, como se diz, a "inteligência" do instituto.
À primeira vista, não há nada errado com ele. Sua presença no processo do STF, porém, causa surpresa: ao contrário do que se passa nos demais tribunais, o mesmo grupo de juízes do STF que toma a decisão original terá de analisar o recurso. No âmbito do STF, os embargos se sustentam com base na ambiciosa premissa de que os juízes teriam abertura de espírito para alterar suas opiniões anteriores à luz de novo confronto argumentativo. Os embargos culminariam, supõe-se, numa melhor prestação da justiça. Se essa premissa, contudo, não for plausível dentro da cultura decisória do STF (sabidamente individualista), embargos infringentes são pura perda de tempo e energia.
Há outro complicador. Se, no intervalo entre a decisão original e os embargos, novos juízes forem nomeados para o tribunal em substituição aos que se aposentam (como ocorreu na atual composição do STF, com a entrada de Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso), esses juízes podem, em alguma medida, virar o placar. Nesse caso, aos olhos do público, mais que um catalisador de argumentos depurados para a melhor prestação da justiça, os embargos infringentes não passariam de artifício para alterar a decisão graças às novas cabeças que entraram no jogo. Um fato arbitrário (novas cabeças), não novas razões, determinaria o resultado final.
Há quem diga, por fim, que os embargos infringentes concretizariam a garantia ao duplo grau de jurisdição para os réus que detenham foro privilegiado. Afinal, no caso desses réus, o STF serviria como primeira e última instância no processo. Essa é, entretanto, uma justificativa mal fabricada. Como só têm direito aos embargos os réus que, apesar de terem sido condenados por maioria, receberam pelo menos quatro votos pela absolvição, os réus que não obtiverem tais votos estariam privados do direito de recorrer, uma discriminação injustificável. Além disso, o duplo grau de jurisdição é um direito que exige um julgamento por juízes diversos dos primeiros, o que não ocorre no caso do STF. Se for para garantir o duplo grau aos detentores de foro privilegiado, alguma outra fórmula precisa ser inventada. Associar os embargos ao duplo grau seria baratear esta garantia constitucional e superestimar o papel daquele recurso.
A adoção de embargos infringentes no STF, por isso, não parece ser produto de extraordinária inteligência institucional. As recentes discussões escancaram que, entre embargos, agravos e apelações, há muita coisa fora de ordem no nosso mastodôntico sistema processual.
Qualquer sistema processual, entre outras coisas, deve efetivar um componente elementar do constitucionalismo: o direito de defesa. Não existe Estado de Direito na ausência da fricção argumentativa estimulada pela oportunidade de defender-se. É desse direito que extraímos o direito de recorrer. O recurso teria ao menos três funções: a técnico-jurídica, ao tentar corrigir erros de instâncias inferiores; a política, ao dar lastro institucional mais robusto a uma decisão de autoridade; e a psicológica, ao conceder ao indivíduo afetado uma segunda chance.
Mas o cipoal de recursos do processo brasileiro é consequência de uma perversão dessas funções, do abuso do direito de defesa. Acredita-se que a maximização dos recursos equivale à minimização da falibilidade judicial. Com base nessa crença de fundo nosso sistema processual permanece refém da chicana advocatícia bem remunerada, em prejuízo de outros valores que o processo deve realizar, como a igualdade e a celeridade. O processo judicial, o penal em especial, é um dos nossos mais eficientes motores de discriminação.
Essas patologias são relevantes para pensar numa reforma corajosa e radical do processo. Ainda assim, nada têm que ver com a decisão do STF de acolher os embargos. Gostemos ou não do recurso, a maioria dos ministros entendeu que ele permanece vigente com base no regimento interno do STF e não teria sofrido, como outros alegaram, revogação implícita pela Lei 8.038, de 1990. Se a revogação fosse tão óbvia na vontade do legislador, como lembrou o ministro Celso de Mello, faria pouco sentido que os parlamentares de PSDB, DEM, PPS e PT tivessem, em 1998, rejeitado projeto de lei enviado ao Congresso pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso e que extinguia os embargos infringentes. Por mais irracional que seja, o sistema vigente precisa ser obedecido até que uma reforma o corrija.
Há vários atalhos fáceis para desqualificar a decisão do STF. Um deles é reduzir a decisão a um sintoma de iberismo, formalismo ou seja lá o que for. Melhor ainda se puder lustrar o rótulo com a citação oca de filósofo famoso. Esse caminho mais atrapalha do que ajuda, pois se recusa a participar da trabalhosa tarefa de interpretar e reformar o direito. Outro é proclamar-se intérprete oficial das manifestações e apelar para "a voz" das ruas: se não há resposta clara nas leis, curve-se à que mais agrada às maiorias de conjuntura. Um tribunal não pode ser surdo às múltiplas "vozes" das ruas, mas há maneiras e maneiras de ouvi-las. Ainda bem que o STF, a despeito do esforço de alguns ministros, não se rendeu à pior delas.
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