O Estado de S.Paulo - 16/04
A recente regulação trabalhista das empregadas domésticas tem provocado grande desconsolo em patroas peruas. Em pânico, descobriram que há 'classes sociais' e que as criaturas que limpam banheiros e fazem feijão não foram trazidas por um vento, sem endereço, sem sobrenomes, sem carteiras.
Por isso, lembrei-me de Um Coração Simples, de Flaubert, um dos maiores contos da história da literatura. Minha família também teve uma empregada perfeita, como a Felicité do conto, que durante a vida toda cuidou de uma família francesa de província como de um templo sagrado. Nossa Felicité chamava-se Hermínia. Era quase um fiapo, quase nada, pretinha, magrinha, mirrada e viera da roça como todas as empregadas da época. Achávamos que 'roça' era um lugar de onde vinham as pessoas pobres, outro país, com batatas e mandiocas, pastos de bois e empregadas que se agregavam a famílias urbanas. A 'roça' era o resto de um país de escravos libertos que continuavam escravizados por salários magros e se alojavam no quartinho perto do tanque. Hermínia trabalhava com meus avós que moravam ao lado de meus pais. Ela cozinhava, arrumava a casa, lavava, passava, com pequeno salário que guardava, pensando num futuro onde havia um enxoval e uma casinha. Viera muito mocinha; era da idade de minha mãe e minha tia e cresceu junto com elas, que casaram e tiveram filhos; ela não teve filhos nem casou, mas continuou rindo sem inveja, cuidando das crianças que não teve, a quem amava com devoção de 'mãe preta', como se nomeara. Talvez como consolo, falava sempre de um namorado que nunca ninguém viu chamado Ormezindo (lembro do nome que me fascinava e pensava: "Como será o Ormezindo?").
Ele nunca apareceu, nunca o vi. Em um fim de ano, ela o esperou para uma visita prometida. Não veio num dia, nem no outro. Até que uma prima ligou de um telefone público e ela se trancou no quartinho do quintal. Eu vi pelas frestas que ela chorava no chão, agarrada numa imagem de São Jorge, de capa vermelha, lança e dragão. Não tive coragem de entrar no quartinho, pois percebi que ela estava longe dali, chorando e falando com alguém em algum lugar da terra de onde viera. No dia seguinte, botou um vestido preto e foi à tenda espírita, de onde voltou mais calma, pois a mãe do centro lhe disse que um dia ela ia encontrar o Ormezindo de novo. Minha avó segredou-me que o Ormezindo aparecera morto na estrada de Pati do Alferes, onde se conheceram.
E a vida continuou. Todo mundo envelhecendo e só Hermínia continuava igual, como se o tempo não passasse sobre ela. Ali, sob o caramanchão do quintal, lembro de meu avô de pijama engraxando os sapatos, minha tia lavando os cabelos, minha avó regando as flores, e de mim mesmo, que ela fazia girar num corrupio que me arrancava risadas infinitas.
Sua presença atemporal me dava a sensação de que nossa vida suburbana era imutável. Hermínia era a empregada perfeita, tão diferente das criadas de mamãe, como a América, cozinheira maluca que (ela afirmava) voava até o teto, onde ficava grudada como uma lagartixa. Todas invejavam vovó com seus cabelos azuis que Hermínia tingia no quintal em uma bacia de louça. "Empregada boa é sorte..." - diziam as vizinhas.
Minha avó morreu de repente e meu avô, lentamente. Vovó deu um suspiro e finou-se; meu avô foi ficando lelé. Hermínia levava-o para passear e ele gostava de ver a estrela de néon da cervejaria Princesa, onde ele me levava sempre na infância.
Depois, ela foi morar com ele num apartamento de Copacabana, onde ele falava confusamente sobre seu passado. Consciente da memória frágil, um dia perguntou-me rindo: "A vida não tem sentido ou sou eu que estou gagá?" Ela cuidou de meu avô até o fim e me ajudou a pô-lo no caixão da Santa Casa.
Depois da morte de vovô, Hermínia foi trabalhar com minha mãe, mas não foi feliz. Minha mãe tinha caído numa progressiva depressão bipolar tendo horríveis fobias, como a cisma de que o gato do vizinho a odiava e lhe mostrava as garras ferozmente. Hermínia levou-a a um centro espírita 'linha branca' e a vidente lhe garantiu, com voz grossa de caboclo, que ninguém a perseguia, nem o gato. Não adiantou; piorou, pois mamãe acusou-a de ter parte com o Demônio do centro espírita. Hermínia aceitou a humilhação com a resignação do sofrimento pobre, aprendido entre milharais e pastos de capim-gordura.
Papai não falava quase, lendo revista na sala, de pijama, ouvindo os delírios de mamãe, pastoreada pela criada, virada em acompanhante.
Até que morreram os dois. Só ficou Hermínia, que foi morar com vagas primas em Caxias. Todo mês, eu mandava um dinheiro fixo para que cuidassem bem da minha babá já velhinha - se ela morresse, acabava a grana.
De vez em quando, ela me telefonava de Caxias. Dava para ouvir no fone o outro mundo onde ela vivia, agora no presente, com sons de rádios evangélicos, gritos de criança, latidos, ruídos de subúrbio longínquo. Sua voz soava um pouco como um anseio em busca do passado que tinha acabado. E como era estranho ouvi-la no presente, sua voz longe de nossa casa, como se ela tivesse sobrado da casa desabada, procurando meus avós! Ao telefone, sua voz ficava 'tatibitate' como se eu ainda tivesse 7 anos: "Oi, Arnaldinho, meu amorzinho?"
Até que um dia, ligou uma das primas para informar que Hermínia tinha feito a 'passagem' de noite. A 'passagem' fora muito calma: ela estava deitada na cama abraçada na estatueta de São Jorge.
Quando ela ainda era viva, de vez em quando eu mandava um táxi buscá-la. Ficava comigo no apartamento e eu a beijava muito, pois não havia assunto possível. Me tratava sempre como menino e ficava um pouco constrangida de estar na poltrona de veludo de mamãe que ela bem conhecia. De repente, se levantava e ia para a cozinha. Entrava com ar de titular diante da empregadinha e começava a lavar a louça. Eu protestava, mas ela fazia questão. Lavava pratos e copos com zelo. "Olha aqui o copo de cristal que seu avô gostava tanto...". Ouvindo os barulhos da louça, parecia mesmo que o passado tinha voltado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário