segunda-feira, abril 01, 2013

Entre desejos e realidade - MARCELO DE PAIVA ABREU

O ESTADÃO - 01/04

Beira a monotonia insistir em que o Brasil, na presidência de Dilma Rousseff, desistiu de ter política externa própria, inclusive no terreno econômico. O processo de satelitização de Brasília em relação a Buenos Aires é sem precedentes na história da diplomacia brasileira. Resulta, em parte, da reconhecida ojeriza da presidente ao Itamaraty, o que abre mais espaço para o miolomolismo de seus assessores diretos na área externa. Isso a despeito de sucessivos revezes: na pretendida mediação iraniana, na diplomacia hoteleira em Honduras, na trapalhada paraguaia, etc. A ênfase continua a ser em laços estreitos com o bolivarianismo, agora pós-chavista, e o neoperonismo na versão Fernández de Kirchner. Mas não se deve deixar de levar em conta a maleabilidade do Palácio dos Arcos às imposições do Planalto. Em outros tempos, a instituição ofereceu maior resistência às pressões dos donos do poder.

Em meio ao clima de expectativas positivas quanto a um possível acordo comercial entre os EUA e a União Europeia (UE), pode ser detectado algum otimismo, em círculos empresariais nos EUA e no Brasil, em relação a ressuscitar a ideia de um acordo comercial entre o Brasil e os EUA. Tal otimismo está baseado em ilusões, com a intensidade do desejo prevalecendo sobre a realidade dos fatos.

A longa história das fracassadas negociações para alcançar a integração hemisférica é conhecida. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi objetivo importante para sucessivos governos dos EUA pelo menos desde o início da década de 1990. De Brasília, o projeto foi encarado com desconfiança por duas razões principais. No plano político, havia relutância quanto ao alinhamento a Washington e às possíveis limitações à diplomacia brasileira em escala global. No plano econômico, foi percebido bem cedo que o governo norte-americano não estava preparado para convencer os "interesses especiais" nos EUA, preponderantemente no setor agrícola, a fazer as concessões que seriam a contrapartida às possíveis concessões brasileiras no que se refere à proteção de bens industriais e às regras associadas a temas como propriedade intelectual, investimento direto, serviços e compras públicas.

Era como se Washington pretendesse generalizar a estratégia de negociação adotada no Nafta, definida com base na maior competitividade da agricultura dos EUA em relação à mexicana. Mas, nas negociações da Alca, o Brasil era demandeur em agricultura e punha a agricultura norte-americana na defensiva.

O outro tema econômico de interesse do Brasil era a limitação do escopo para o uso de medidas discricionárias de defesa comercial, tema que os EUA insistiam em que deveria ser tratado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Essas dificuldades já haviam emergido claramente no governo FHC. Com a posse do governo Lula, houve ênfase redobrada nas limitações políticas à integração hemisférica. A Alca virou anátema num quadro em que foi fortalecida a "política externa de massas". No plano econômico, a insistência dos EUA em retirar da mesa de negociações tanto subsídios agrícolas quanto defesa comercial, para tratamento na OMC, levou à proposta brasileira de fazer o mesmo com os temas não tradicionais. A Alca ficou tão "light" que se dissolveu no ar. Mas o funeral foi protelado até 2005.

A argumentação dos que acreditam que houve mudança significativa nas condições que ditaram o fracasso da Alca em 2005 está calcada em argumentos políticos e econômicos. No terreno político, alega-se que a consolidação do País como potência regional e seu avanço para tornar-se potência mundial teriam eliminado o risco de "cristalização da assimetria de poder entre EUA e Brasil". O diagnóstico deixa de lado a óbvia fragmentação que marca hoje a América Latina, entre o bloco chegado às diversas vertentes do populismo (Argentina, Bolívia, Brasil, Equador e Venezuela) e os países que têm adotado políticas mais consequentes: Chile, Colômbia, México e Peru. Também não parece razoável subestimar as fricções quanto à liderança regional entre Brasil e México. E as pretensões brasileiras em relação à diplomacia global têm sido marcadas por recorrentes decepções.

Por outro lado, e mais importante, não é possível perceber mudança significativa quanto à desconfiança do governo em relação a uma aproximação política aos EUA. Tal desconfiança talvez pudesse ser minorada pela ação de diplomatas profissionais, mas, com o Itamaraty perdendo espaço para o Planalto, isso se tornou bem pouco provável.

No terreno econômico, os argumentos estão centrados na ideia de que a ascensão da China teria tornado menos relevante o problema da concorrência norte-americana. E de que um possível acordo EUA-UE poderia atenuar o protecionismo agrícola nos EUA. Os argumentos não se sustentam. De fato, a concorrência chinesa tende a tornar mais entranhadas as resistências protecionistas da indústria brasileira. E, sendo a Europa notoriamente ineficiente na agricultura, é difícil perceber como um futuro acordo EUA-UE poderá contribuir para abrir o mercado agrícola norte-americano.

Os fatos mostram que o relançamento das negociações da Alca é muito improvável. A despeito dos desejos.

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