domingo, agosto 19, 2012

Isso é fichinha! - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 19/08


Você conhece o tipo. É alguém contar um caso - e lá vem a criatura:

- Isso não é nada! Fichinha perto do que aconteceu comigo...

"Comigo" ou com fulano - não importa: importa é passar um rolo sobre a história precedente e impor a sua como vencedora. Nem precisa ser um relato de grandes feitos, no qual o protagonista pontifique como herói. Não se trata de narrar façanha edificante; ao contrário, muitas vezes ser história triste ou feia, não raro condenável e até mesmo repulsiva. Tanto faz; campeão, nessa porfia, é quem conta o melhor conto.

Não faltam, claro, intervenções destinadas a glorificar alguém, em geral o narrador. Vai me dizer que você nunca viu, na sala de embarque do aeroporto (Miami, Orlando, Buenos Aires), compatriotas nossos que, com aquele excesso de decibéis característico de brasileiros em viagem, alardeiam ter comprado coisa melhor e muito mais em conta.

No bairro onde cresci havia uma senhora cujos filhos, a seu ver e contra várias evidências, deixavam no chinelo qualquer um das vizinhanças. Verdade que tomavam bomba, mas por incompreensão dos professores, despreparados para lidar com inteligências tão acima da média. Só num ponto, vejo hoje, teria aquela dona direito a contar vantagem: se os filhos das outras fumavam maconha, os dela, além de pitar, plantavam. No telhado do lar. Pena que mamãe não soubesse da autossuficiência tabagística de sua prole.

Elizabeth Bishop, numa carta, conta que a companheira, Lota de Macedo Soares, foi fazer compras num povoado perto de onde moravam, na serra fluminense - e o feirante, ao saber que a poeta americana ganhara um importante prêmio em seu país, reivindicou sua parte nele:

- Eu dou sorte às freguesas - gabou-se, pesando as batatas. - Tem uma que outro dia ganhou uma bicicleta numa rifa.

No meu já longo trato com todo tipo de contador de vantagem, estou em condições de afirmar que são mais frequentes os relatos de infortúnios. Doença, morte, miserê. Tive uma faxineira (não, não é aquela que ia ao "espermercado") incapaz de ouvir caso ou notícia ruim sem reagir de bate-pronto, ainda quando não tivesse munição à altura. Alguém tinha morrido naquela madrugada? A Rosa não se dava por derrotada: e eu que não preguei o olho, de tanta dor de cabeça? Tinha sempre uma doença do dia - zoeira nos ouvidos, tremeliques numa pálpebra, uma pontada aqui, ó.

Para gente como a Rosa, o câncer do nosso pai nem de longe se equipara aos tumores que carcomeram as vísceras da mãe de alguém, em sofrimentos muito mais pungentes. O assalto de que fomos vítimas é pinto se comparado ao sofrido por beltrano. Conheço certa matriarca que ao botar em livro a saga da sua vida se esmerou em "melhorar" os casos, de modo a torná-los piores, isto é, mais tristes e dramáticos, daí resultando uma catadupa de vicissitudes que a autora, quem duvidaria?, magnanimamente soube superar.

Nos meus remotos 22 anos, tive em Bariloche uma namorada que me proporcionava qualquer chance (quase toda, vá), menos a de suplantá-la no terreno da desgraceira. Nenhum infortúnio por mim relatado chegava aos pés dos que a Ana desfiava, enquanto nos enregelávamos às margens do Lago Nahuel Huapi. Talvez só a desdita de quem, namorando em portunhol, chafurdava inexoravelmente em climas de tango e bolero: Te quiero, mi vida, jamás te olvidaré, bésame, cariño, bésame mucho - e tome saraivadas de !!! e ¡¡¡.

Derrotado de saída no quesito linguístico, ainda tive a pretensão de competir com a moça, cujas histórias, cada vez mais dramalhosas, iam aniquilando meus gaguejantes enredos. Joguei a toalha quando ela me soterrou com as desventuras da órfã que seus pais pegaram para criar: não bastasse à moça ter nascido sem um braço, o noivo lhe pespegou um par de chifres, o que a obrigou a matá-lo, embora o amasse, com três tiros, ¡pum! ¡pum! ¡pum!, antes de enforcar-se no jardim, donde la encontraron colgada, la pobrecita.

Não sei como não balbuciei:

- Ganaste, mi tesoro...

(Tenho a impressão de ouvir aí alguém dizendo que já leu crônica muito melhor sobre gente que sempre tem uma história insuperável).

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