sexta-feira, março 16, 2012

O Sarah - FERNANDA TORRES

FOLHA DE SP - 16/03/12


O resultado é uma visão ampla das enfermidades, anseios, carências, dores e prazeres do paciente


Domingos Oliveira, que diz ter testemunhado o fim do comunismo, do casamento, da psicanálise e do humanismo, acompanha agora o enterro de mais uma utopia. Ouvi da boca de economistas: o capitalismo fez a passagem.

A competição desenfreada levou a humanidade para a zona de risco até irmos todos à bancarrota. O Estado pagou a conta, como na velha tradição soviética. Não adianta controlar demais, e nem de menos.
Em 1960, o ortopedista Aloysio Campos da Paz deixou a família com larga tradição na medicina do Rio de Janeiro para se aventurar na implantação de Brasília.

Seu primeiro emprego foi em um hospital de campanha, atendendo os candangos acidentados do gigantesco parque de obras.

Uma década depois, chamado pelos generais, assumiu o hospital Sarah Kubitschek, um centro de reabilitação motora fundado pela ex-primeira dama.

Lúcia Willadino Braga veio com os parentes do Sul e foi aluna de Paz. Nas poucas escolas da capital do futuro, todas públicas, estudavam o filho do ministro e o do porteiro. "Havia um sentido de comunidade. Éramos poucos e todos se conheciam."

A agudeza da estudante de 17 anos levou Paz a dar sinal verde para que Lúcia iniciasse a sua pesquisa de recuperação por meio da arte. "Se um médico não leu 'Moby Dick', como ele pode ser médico?", ela costuma dizer. A parceria dura até hoje.

O Sarah foi fundado em um gabinete. O primeiro hospital modelo foi inaugurado em 1980. Em 1991, com aprovação por voto no Senado e na Câmara, a verba da instituição passou a sair diretamente da União para a conta da sociedade de direito privado, sem fins lucrativos. Com essa independência, a rede foi ampliada.
A cada novo presidente, e foram muitos, o arranjo é questionado. Por que proteger alguns dos interesses partidários que disputam o orçamento ministerial enquanto os outros guerreiam nas emergências do SUS? Uma breve rodada pela internet já denuncia a agressiva divisão de opiniões. A única justificativa para a sobrevida do Sarah é a excelência do seu serviço.

A criadora do "Braga's Method" é uma assalariada, deve ganhar menos do que um profissional da sua altura em um consultório particular, mas conta com uma rede hospitalar de vanguarda que ajudou a criar. Os equipamentos são projetados por eles, e os médicos não têm outro emprego. No Rio, um passeio pelo complexo arquitetônico verde de João Figueira Lima, o Lelé, atravessa sessões de dança de salão, pintura, piscinas com esteiras submersas e auditório futurista. É um mundo que repete a Brasília da menina Lúcia, onde o engenheiro, o cientista e o peão conviviam próximos, cercados pela audácia estética de Niemeyer.
"O pessoal da limpeza olha no microscópio para entender o porquê da faxina", explica Lúcia.

Ali, a corrupção não devora recursos, não há trocas políticas e nem mercantis. "Se sou patrocinada por uma empresa farmacêutica, terei que usar esse ou aquele medicamento. Na medicina pública, escolhe-se o melhor." Parece delírio, mas não é. A rede atende a 2 milhões de pessoas democrática e gratuitamente, exporta descobertas e presta contas.

Não falo com isenção. A mistura de alto conhecimento científico com prescrições singelas, e igualmente importantes, como um passeio à beira-mar, salvou meu pai do labirinto de fármacos dos especialistas.
O Sarah não opera intestino e nem enfrenta doenças infectocontagiosas. Focado na ortopedia e na neurologia, sua ciência estuda a relação entre o corpo e a mente, a carne e o espírito.
O resultado é uma visão ampla das enfermidades, anseios, carências, dores e prazeres do paciente; palavra que Lúcia detesta.

A história do Sarah se baseia na persistência de um grupo de profissionais capacitados, que encontraram brechas para crescer com audácia em sociedade com o governo. É uma experiência que extrapola o setor de saúde e ensina a respeito de uma possível terceira via entre o totalitarismo de Estado e a voracidade do livre mercado.

O trabalho de Paz e Braga também recupera valores humanos como a ética, a família, a arte e a filosofia. É um hospital modelo para muitas de nossas mazelas.

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