domingo, outubro 16, 2011

JULIANA FRANK - A viúva de quatro



A viúva de quatro
JULIANA FRANK
FOLHA DE SP - 16/10/11

Estou viva! Estou viva! Essa frase cotidianamente repetida por mim é uma mensagem galhofenta aos fantasmas de meus quatro finados maridos. Eles me fitam de lá, da tediosa nuvem azul. Eram todos tão avarentos. Espero que os mortos vivam de graça!
Sei que usam pijamas blue-escolares. Vez por outra, tocam violino. E quando, por intermédio das coincidências (ou má distribuição da renda celestial), acabam se encontrando, cumprimentam-se de forma civilizada, na comunhão silenciosa de quem sabe o quanto o outro penou. "Arlette", um nome vilanesco, brada o coro dos quatro excelsos do céu em direção ao inferno. Vai que o diabo é surdo.
Que esses quatro, que desejam minha partida, saibam: o paraíso se abrirá para mim em vida, já que na morte terei de derrubar a porta. E só saio deste inferno por um que arda melhor. De qualquer forma, não morrerei de tédio, não apodrecerei de células revoltas, tampouco hanseníase na língua hei de ter. Eu, a Highlander de calcinha, morrerei contente, sem nenhuma cicatriz.
Foda-se o além-túmulo e o lugarejo para onde me enviarão. O que importa é a vida vivente e meus olhos incendiários, que ainda e por muito esmagarão cromossomos ípsilon. Seguindo meu pensamento, rebolo sem música nas calçadas de passos apressados em meio à cidade maluca. São Paulo tem muitos homens que desejam a demissão, o divórcio, a invencível solidão por uma boceta que se saiba pensante e é.
Minha profissão está diretamente ligada à minha boceta. Tentei ser quenga, relutei para seguir minha real inclinação. Sou uma vidente do passado. Tudo começou na puberdade, época em que as tardes inúteis me inspiravam a massagear o clitóris. De repente, tive o superpoder de alcançar o passado de meus vizinhos.
Aqueles vizinhos óbvios, que fofocavam, nem podiam imaginar onde eu guardava seus segredos. Na xana cassandríca! Na visioboceta! Paro diante dela, faço movimentos confusos para que a dita não delire, orgástica que é, e enfim recebo revelações vivenciadas em pretéritos imperfeitos. Todo passado é infausto.
A visioboceta, no correr dos anos, passou por violentas tribulações com meus ex-maridos, completamente invaginados por mim. Isso a deixou mais afiada. Quem sofre sabe alguma coisa, e não é diferente com os órgãos reprodutores de visiones. Em menos de três segundos ela consegue ver o seu passado, a sua mãe de banhas multiplicadas. A vista que seu pai viu, o princípio que te pariu a filhosofar-te.
Uma pena, minha visioboceta não pôde ver a morte de meus três maridos, nem eu, ocupada que estava em transar com o coveiro em meio ao fogo-fátuo. Nicolau, meu quarto varão enterrado. Imprescindível em minha biografia! Morreu de burrice vitae, tolo e inócuo como nasceu. Dos outros três lembro-me apenas de "Roverfal", ou "Falfal", ou "ponta firme pau mole", eis o melhor marido em matéria de herança, merece a lembrança.
Não matei nenhum deles, como sua maldade há de imaginar. Todos morreram por justa causa. Se me recordo vagamente de cada um, é devido às ações retropremonitórias que acabam por ocupar os fundamentos de minhas partes baixas. Deixo as memórias para meus clientes, sequiosos por visões proclamadas em gemidos. Sim, eles tentam tocar-me, mas a vidência é sexualmente transmissível.
"É tudo muito turvo", diz a boceta profética, "é tudo embaçado", assim ela começa, depois vai mostrando fatos episodiais. "Como quando sua mãe revelou que o seu pai era uma foto emoldurada na parede" -geme a boceta a um cliente.
"Meu filho, essa é mais uma mentira incógnita de sua mãe, que apenas comprou a foto de um militar na época da dita para preencher o vazio paternal na parede e em sua pobre vida" -dessa vez, fui eu quem disse, colhendo os furos da história; afinal, se esse pai fosse general, o cara teria uma boa aposentadoria e não reclamaria do meu preço.
Mas dou um desconto aos clientes mais assíduos, como esse que me visita todo dia e até tentou fazer um plano eterno, oferecendo matrimônio e o escambau. Nada disso me anima. Ultimamente, prefiro deixar a vida pra lá!
Outros tantos adoram que eu narre seus passados. Nem se atrevem a perguntar sobre o futuro, sabem bem que a vida é como um roteiro cinematográfico sem a eternização das imagens. No céu é proibido ejacular, meus falecidos maridos logram gozar com Arlette espetada no garfo vermelhão. Ora vão! Vão plantar dentaduras nessas bocas desocupadas! Minha campainha uiva, sempre mais um cliente urgindo relembrar. Meu bolso sorri no presente. E minha visioboceta jorra um gozo memorável. 

3 comentários:

Anônimo disse...

Gosteeeeei! Já tinha adorado topar com esse texto no caderno da Folha, o Ilustríssima. Mas encontrá-lo aqui no blog foi uma repetição do prazer - e economia de tempo, já que ia escanear o recorte do jornal para ter uma via sempre disponível no palmtop.
O texto meio psicodélico dela evoca A Casa Dos Budas Ditosos, minha leitura recorrente. Ponto pra ela, ponto pro blog.

Anônimo disse...

Faltou apenas a ilustração.. lindíssima.

Anônimo disse...

Seria mais legal se houve uma ilustração!!!
Adorei reler! Saúdável esta Juliana!!!