sábado, maio 28, 2011

FERNANDA TORRES - Urbano


Urbano
FERNANDA TORRES 
FOLHA DE SÃO PAULO - 28/05/11

A tomada da Roosevelt e o renascimento da Lapa, no Rio, traduzem potencial da união entre arte e cidade


O RISCO do nome do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, ser desvinculado do prédio onde existiu me causou espanto. A antiga proprietária do imóvel, a empresária Magnólia do Lago Ferreira, pleiteia para si o título do estabelecimento com o argumento de que o edifício, adquirido em 2008 pela Funarte, nada tem a ver com a marca.
O luminoso que pertencia à fachada desde a sua fundação, em 1948, foi retirado. Eu o imagino pendurado em um bar da capital, a léguas de distância da memória de Cacilda Becker e Paulo Autran.
A Funarte garante que já solucionou a pendenga e que o TBC não vai se transformar no antigo TBC.
De que vale um nome sem um corpo para encarná-lo? O caso me lembrou o litígio entre Luiza Brunet e Humberto Saad, que registrou e, depois, devolveu o direito sobre a alcunha de batismo da modelo.
Um teatro não é feito apenas de tijolo, ferro ou madeira. As ribaltas se impregnam da presença dos que pisam ali.
Fui vaiada no teatro Tuca com Don Juan, montagem de Gerald Thomas para texto de Otavio Frias Filho. Em meio aos urros da plateia, era impossível não lembrar de outras vaias, de importância histórica muito superior à nossa, ocorridas naquele lugar. Faz parte do caráter do Tuca a manifestação voraz da audiência. Só nele é assim.
A última vez que pisei no Teatro Oficina foi para assistir a "Terra", primeira parte da trilogia de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha. Me impressionou não só o rio São Francisco se abrindo no mar, a teatralização do Xisto, da Caatinga, mas também o próprio espaço enraizado no terreno.
O equipamento de luz e som, o telão, o terreiro, as árvores, todo o Oficina havia amadurecido como um organismo vivo, biológico, uma extensão dos que encarnaram no endereço desde que este servia de sede para um centro espírita.
Do meio do picadeiro, o Conselheiro Zé Celso proclamou o Bexiga o umbigo de Sampa e partiu com a trupe para a demolição simbólica da parede do fundo, a que separa o palco avenida de um estacionamento do Grupo Silvio Santos.
A parede ainda está lá. Silvio acena agora com a possibilidade de negociar os cobiçados metros quadrados por outro terreno fora dali. O fato abriria passagem para a conclusão do projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi para o Oficina e traria luz para a ambiciosa reurbanização da área, proposta por Zé Celso, unindo simbolicamente a Bela Vista e o Bexiga, o Oficina e o TBC.
Fui olhar no Google Earth. O estacionamento do Grupo SS, uma milagrosa extensão murada e vazia, desemboca na bucólica rua Jardim Heloisa, pedaço-modelo do velho Bexiga. A pequena Jardim Heloisa termina na rua Major Diogo, em frente ao atual Centro de Preservação Cultural da USP, o Solar da Dona Yayá, , vizinho do TBC.
O teatro é um dos talentos natos de São Paulo. Um corredor cultural que salve aquele último terreno baldio de evoluir de estacionamento para espigão, tendo como marco dois teatros emblemáticos, seduz.
É claro que um projeto desse porte envolve desapropriações, processos, cifras incômodas e envolvimento político. Temo tocar no assunto e ser arrastada para o labirinto de fogos amigos e inimigos que rondam o MinC.
A presença carnal de um ator em um determinado lugar é a essência da experiência teatral. É impossível reproduzi-la fielmente em outras dimensões. O teatro, na contramão da ordem dos acontecimentos, é o reverso da informação digital para milhões. Ele precisa ter corpo.
A tomada da praça Roosevelt pelos Satyros e o renascimento do Lapa, no Rio de Janeiro, através do Circo Voador e da Fundição Progresso, provam a utilidade prática de uma profissão etérea. São modelos que traduzem o potencial da união entre as artes e a cidade.
No dia 24 de junho de 2011, haverá uma ato cultural no Teatro Oficina e arredores em torno de uma fogueira de São João. Será a abertura do ciclo de peças "Dionizíacas Urbanas Antropófagas em Sampã", com apresentação de "Cacilda!!".
A festança junina ainda inclui uma caminhada peripatética pela redondeza. Fica o convite para quem quiser conferir in loco a realidade de uma audácia tentadora.

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