sábado, abril 30, 2011

MANOEL CARLOS - Pé descalço


Pé descalço

MANOEL CARLOS


REVISTA VEJA -RIO


Quem não se lembra desta frase:

— Fala baixo, que tem gente de pé descalço.
O “pé descalço” era sempre uma criança, menino ou menina, que, em matéria de curiosidade infantil, todas são iguais. Ouvi muito essa recomendação trocada entre os adultos, e fingia estar dormindo. Gostava de me deitar no chão, enquanto os mais velhos conversavam. O cenário era sempre a sala de visitas, onde ficava o piano, peça nobre, tal como a cristaleira era a rainha da sala de jantar. Ter esses dois espaços em casa, ensinar música às crianças e servir licor após o jantar estavam entre as diversas condições que separavam a classe média alta da baixa, mais tarde diferenciadas pelas letras A e B. Hoje, segundo os boletins que medem a audiência da televisão, essa diferença se estende de A a E!
Bem, todo esse preâmbulo para contar aos meus possíveis leitores uma história tragicômica que ouvi na tal sala de visitas da minha casa, onde vivíamos — eu, duas irmãs e um irmão mais novo, ao lado dos nossos pais e da vó Leonor, a santa gorda da minha infância.
A história girava em torno de um casal de vizinhos, seu Oscar e dona Iracema, exemplos de harmonia conjugal, cantada e decantada em todo o bairro. Vai que um dia ele ficou muito doente e foi para o hospital. Lá os médicos, sem meias palavras, afirmaram que o pobre homem, com menos de 50 anos, tinha poucos dias de vida. Dona Iracema chorou muito e o filho único — criança como eu — quedou-se apalermado diante da notícia. Vendo-se às vésperas da morte, seu Oscar pediu à esposa que, assim que ele morresse, abrisse uma determinada gaveta em sua escrivaninha doméstica, que lá encontraria uma carta a ela dirigida. Dito isso, deu à dona Iracema uma chave da qual nunca antes se separara.
Acontece que o Destino não concordou com os médicos: para espanto de todos, seu Oscar recuperou-se e voltou para casa, não posso dizer que saltitante, mas razoavelmente bem de saúde. Pouco tempo depois, o Destino fez uma nova surpresa: dona Iracema, até então uma quarentona enxuta e cobiçada, teve um mal súbito e... morreu. O espanto não podia ter sido maior. Todos sofreram muito diante do inesperado e seu Oscar mais do que todos, já que carregava a culpa de ter sido infiel à esposa, praticamente desde a lua de mel.
Tal foi o remorso que seu Oscar chegou a lamentar não ter morrido antes, pois assim a esposa teria encontrado na tal gaveta fechada uma confissão completa de suas aventuras extraconjugais, acompanhada de um pedido de perdão de comover as pedras da calçada.
Esse sofrimento seu Oscar viveu durante dois meses, precisamente até o dia em que resolveu mudar-se para uma casa menor, em busca de uma vida mais simples, mais adequada à sua nova condição de viúvo solitário e amargurado. Foi quando o Destino entrou em cena pela terceira vez: ao cuidar da mudança, seu Oscar encontrou no pequeno altar mantido no quarto de casal, onde dona Iracema costumava ajoelhar-se e recitar suas orações diurnas e noturnas, escondida bem atrás da imagem de São Judas, uma carta a ele endereçada. Abriu o envelope lacrado com mãos trêmulas de emoção, e qual não foi sua surpresa ao encontrar, com aquela letrinha miúda, juvenil e encantadora da esposa, a confissão de que ela, também ela, fora infiel no casamento, mantendo um longo romance com o “turco” Ramiro, dono da papelaria. De início, diante daquela revelação, seu Oscar ficou pálido de espanto e... por que não dizer, de indignação. Depois... pensou bem e sentiu um grande alívio por livrar-se daquela culpa que o afligia, a culpa de ter sido infiel. Afinal, se ela lhe dera o troco, estavam quites. E, finalmente, para coroar sua liberdade com mais alegria, lembrou-se de que o “turco” Ramiro havia morrido fazia dois anos. Tudo, portanto, lhe abria a oportunidade de viver o que lhe restava de vida, sem o remorso a lhe roer o coração. Tomou um banho, barbeou-se, vestiu-se com esmero e foi à procura de Renatinha, também quarentona e cobiçada, e por quem sempre se interessara antes que tudo isso acontecesse. Se o romance vingou ou não, nunca se soube, já que seu Oscar, depois de trancafiar o filho único num internato, mudou-se e não deixou endereço nem telefone.
Independentemente do desfecho, essa é uma história que conto a vocês, tal como guardou minha memória, depois de ouvi-la meia dúzia de vezes nas conversas da sala de visitas, como um pé descalço que fingia estar dormindo.

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