Só falta quilombo no Jardim
Marcos Sá Corrêa
O Estado de S.Paulo - 03/12/10
Não podia faltar o dedo da ONG Koinonia no projeto para entronizar as invasões do Jardim Botânico num Museu do Horto, contando a própria história do arboreto bicentenário. O museu deve ser coisa grande e urgente. Tem R$ 1,8 milhão para se instalar e quase a metade de seu orçamento reservada ao pagamento do pessoal que, mesmo trabalhando pela causa, não é de ferro.
Com essa verba, daria para fazer um programa habitacional de fina lavra para os moradores que se sentem na fila do despejo judicial. Mas a ideia, ali, não é bem essa. Patrocinada por uma rede ecumênica de doadores que inclui a Fundação Ford, a Agência Canadense de Desenvolvimento, a Igreja norueguesa e até um Fundo Mundial para o Socorro dos Primatas, a Koinonia devota seus melhores esforços ao avanço de "grupos histórica e culturalmente vulneráveis".
Recuar, portanto, não é com ela. E nós, brasileiros, temos, não é de hoje, "grupos histórica e culturalmente vulneráveis" para todas vocações catequéticas. Já era assim quando os missionários desembarcaram aqui, na proa do comércio ultramarino, para dilatar "a Fé e o Império" em nome de organizações sem fins lucrativos, como a Koinonia. Ela tem sede em Greenville, na Carolina do Norte. Mas se sente num mundo sem fronteiras, abarcando "numerosas etnias, realidades socioeconômicas, modos de vida e idades".
Busca uma "unidade multicultural" de "alcance global". Afinal, koinonia, em grego, é comunhão. E ela se declara "uma igreja em movimento pelo, para e via o poder de Deus". Instalou-se como tal no Brasil em 1994.
Desde então, parece estar em todas. Na última campanha presidencial, durante a crise de fervor religioso da candidata Dilma Rousseff, veiculou um abaixo-assinado com as promessas de voto, as queixas e as expectativas do Povo Tradicional de Terreiro. A carta criticava o conchavo da candidata "com pastores evangélicos", num "infeliz episódio". Reavivava "as denúncias e mais denúncias" sobre o "repasses de verbas, convênios e parcerias de governos municipais, estaduais e federal" a entidades pentecostais, "que não foram cumpridos ou foram usados de forma indevida, criminosa até".
Prometia-lhe o apoio da "População Negra". E agendava com a presidente um encontro formal com os representantes nacionais do Povo Tradicional de Terreiro, "após as eleições, onde a senhora, com a ajuda dos Vòdúns, Nkices, Òrisá''s, Encantados, Caboclos, Castiços e Exús, será vitoriosa".
O encontro lhe encomendaria a revisão do Estatuto da Igualdade Racial, que até agora não ouviu "a População Negra e suas demandas".
Como pode acontecer com o Museu do Horto, um dos vínculos que selaram a aliança da Koinonia com o Povo Tradicional de Terreiro foi a organização de centros de memória para o candomblé.
E, com a População Negra, funciona um pacto de apoio incondicional à titulação fundiária dos quilombos, em sua acepção mais vaga - a da semântica antropológica, que ultimamente passou a considerar quilombo tudo o que se diz quilombo. Eles já são 743, em 21 estados. A Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racional - gestora do tal estatuto que o Povo Tradicional de Terreiro acha insatisfatório - estima seu número em "pelo menos" 3 mil.
A vereadora Andrea Gouvêa Vieira levantou uma ponta desse novelo, ao declarar que não é só o futuro das invasões do arboreto que está em jogo no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Talvez esteja em gestação um quilombo do Horto. Não seria a primeira semente exótica a vingar naquele espaço, onde tudo pega. Nem no Brasil, onde já prevenia a Carta do Descobrimento que a terra "de tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo".
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