Um último serviço
Alon Feuerwerker
Correio Braziliense - 31/12/2010
Diante do comportamento de quem sai, qualquer gesto ou palavra mais civil de quem entra acabará batendo como agradável pancada de ar fresco no ambiente político Se tivesse tempo e condições, daria uma boa olhada nas raízes de um detalhe distintivo entre a política norte-americana e a brasileira. Enquanto aqui o presidente que sai saca sem perdão no cheque especial da origem pobre, nos Estados Unidos o ser negro está explicitamente ausente do discurso de Barack Obama. Pelo menos na função fartamente mobilizada aqui pelo homólogo: vetor de autovitimização em situações de dificuldade política. A negritude esteve o tempo todo na campanha eleitoral que levou Obama à Casa Branca, mas o hoje presidente evitou como pôde na época vitimizar-se. E continua na mesma linha. Naquelas paragens, esse tipo de coisa pega mal, o sujeito passa por “looser” (perdedor). Ao contrário, o candidato e presidente democrata procurou e procura sempre situar a ascensão social e política dos compatriotas negros, bem como a própria, no âmbito dos valores e possibilidades existentes na América construída pelos brancos. É um presidente 100% ocupado em promover a união nacional enquanto transforma o país. Deve haver boas explicações para o contraste e, se você que me lê tiver sugestões bibliográficas, eu agradeço de antemão. Esse prólogo vem a propósito de um registro. Celebra-se em 2011 o sesquicentenário (150 anos) do início da guerra civil dali. A guerra que infelizmente não tivemos aqui, por mais chocante que possa lhe parecer a afirmação. O acerto de contas entre o Norte e o Sul, entre a manufatura e a monocultura, entre o trabalho livre e a escravidão. Daí o “celebra-se”, mesmo tendo sido uma guerra. Aquele elogio quase cultural da altivez — que nada tem a ver com arrogância — possivelmente beba algo dos resultados dessa ruptura sangrenta, que consumiu mais de meio milhão de vidas, mais de dois terços delas civis. Cada país tem sua situação, sua história. Aqui, por exemplo, passa quase em branco um comportamento, algo bizarro, do presidente que sai, num aspecto específico. Já comentei o assunto, mas vale voltar. É inusual o tratamento que ele dá a certos adversários derrotados. O quase ex-presidente amargou quatro grandes derrotas antes de se eleger, reeleger-se e eleger a sucessora. Para governador de São Paulo em 1982 e para presidente da República em 1989, 1994 e 1998. Após nenhuma delas sua excelência recebeu dos vitoriosos tratamento como o que hoje dispensa aos adversários caídos. Sempre foi tratado com respeito político. O presidente buscou nas eleições derrotar alguns nomes da oposição que segundo ele atrapalharam sua vida no poder. São duas coisas normais, a oposição tentar atrapalhar o governo e este buscar reduzir ao mínimo a força política da oposição. Ainda que na narrativa reste um buraco. O governo tinha base teoricamente suficiente para aprovar a CPMF no Senado. Não aprovou porque a base se dividiu. Na sua guerra santa particular nos estados, o ainda presidente teve sucesso em algumas empreitadas, mas não em outras. Do mesmo modo que sua excelência tripudia no Ceará, no Amazonas e no Piauí, poderia receber o troco em São Paulo, Santa Catarina, Goiás e no Rio Grande do Norte. Ou em Minas Gerais. Até por certo detalhe. Uma análise mais detida dos cenários estaduais mostra que as alianças eleitorais inspiradas pelo Planalto foram bem onde o governador e o candidato a governador cuidaram eles próprios da missão e foram mal onde a coisa passou a depender do presidente mais do que seria saudável. Mas quando o leitor estiver lendo estas linhas faltarão poucas horas para Luiz Inácio Lula da Silva envergar o pijama. E aí inquietações como as desta coluna ficarão ainda mais desimportantes. De todo o modo, o antecessor presta um último serviço a Dilma Rousseff. Diante do comportamento de quem sai, qualquer gesto ou palavra mais civil de quem entra acabará batendo como uma agradável pancada de ar fresco no ambiente político. Sem originalidade O Congresso pato manco da Venezuela outorgou ao presidente Hugo Chávez poderes para governar por decreto. Um ato de força, visto que está para assumir uma nova e mais plural legislatura. Talvez tenham se inspirado numa instituição nossa, a medida provisória. Na essência é a mesma coisa. |
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