Nada a esconder
João Ubaldo Ribeiro
O Estado de S.Paulo - 28/11/10
"Privacidade" é uma palavra recente na língua portuguesa. Quem a procurar num dicionário velho, aí de seus 30 ou 40 anos para cima, não vai encontrá-la. Antigamente se usava "intimidade", que, na minha opinião, quebrou bem o galho durante muito tempo. Não obstante, do mesmo jeito que muitas outras palavras nossas, "intimidade" teve todos os seus anos de bons serviços ignorados e foi amplamente substituída, via Estados Unidos, por uma inglesa de som e uso considerados chiques, como ocorre entre nós em relação a qualquer coisa em inglês. "Privacidade", aportuguesamento de "privacy", já foi naturalizada e correm bem longe os tempos em que seria xingada de anglicismo e, se usada numa prova escrita, baixaria a nota. A bem da verdade, ela não deixa de comportar-se como uma boa cidadã brasileira e talvez mereça a popularidade que obteve, talvez nós estivéssemos precisando dela mesmo.
Com a palavra, tudo bem, vida longa para ela, mas a condição que ela designa pertence cada vez mais ao passado. Ou melhor, já pertence ao passado, assim como a agora vingada "intimidade". Juntas, vão fazer parte das recordações de antigamente - o tempo em que existia um negócio chamado privacidade ou intimidade, o qual, suspeito eu, vai ter que ser explicado à geração que hoje é bebê. E, a julgar pelo que vejo em torno, muita gente, talvez a maioria, adere alegremente ao desprestígio crescente da privacidade e de sua colega intimidade. Não só não damos importância ao que fazem para violar nossa privacidade, como nos esforçamos para abdicar dela.
Há quem acredite que certas áreas, como a vida financeira e econômica de cada um, ainda são protegidas. Faz uns três dias, dei uma espiada na relação dos que têm (ou tinham, não vem ao caso, pois indica a experiência que voltarão a ter) acesso a dados dos contribuintes junto à Receita Federal e havia até estagiários. Não custa imaginar que estaria perto a autorização dos síndicos de edifícios de apartamentos, para fuçar a vida dos condôminos. Para não lembrar que já se falou em tudo quanto é tipo de vazamento na Receita Federal. Mas vamos continuar dando um crédito de confiança, que, aliás, é o único crédito nosso que podemos dar à Receita, porque o resto ela já tomou.
Até os bancos suíços, onde qualquer grande ladrão, traficante de droga ou governante corrupto tinha seu dinheiro imundo recebido com circunspecção, recato e maneiras finas, sem perguntas deseducadas e sem impostos penosos e, acima de tudo, sob sigilo impenetrável, até esses vêm sendo atacados. O venerável princípio segundo o qual a respeitabilidade de um homem é definida por quantos milhões de dólares ele tem está sofrendo golpes rudes, partidos notadamente, segundo leio aqui, dos americanos. O fisco americano, diz aqui, está torcendo o braço dos bancos suíços para que liberem dados de cidadãos sob sua jurisdição. Há ameaças de brecar as operações desses bancos nos Estados Unidos, se eles não atenderem aos pedidos de liberação. Verdade que rico ri à toa e que muitos espertos vão conseguir safar-se, mas o mundo não será mais o mesmo sem bancos suíços para higienizar, preservar e fazer render dinheiro sujo. Quanto a quem tem dinheiro aqui mesmo, sabe-se que a informação já está fartamente acessível, não só para os muitos que podem vê-la na Receita Federal, como em camelôs em São Paulo e no Rio, em CDs, ou, se se desejar gastar mais um pouco, documentos já impressos. Ou então se usa alguém de prestígio para mandar o banco quebrar o sigilo bancário do vizinho, do sogro, do marido ou do patrão. Dá para fazer numa boa, como já fez um ex-ministro cujo nome me escapa no momento, mas vocês hão de recordar.
Fora das finanças, acho que a coisa está bem mais aberta, porque a colaboração geral é entusiástica. Nas chamadas redes sociais na internet, milhões (ou bilhões, sei lá) de devotos acreditam que estão recebendo serviços de graça e que, por conseguinte, os donos dessas redes estão ganhando quaquilhões de dólares extraindo-os do ar e não dos bolsos da freguesia. Eles estão, claro, é faturando anúncios e, acima de tudo, coletando dados pessoais de toda espécie, que lhes proporcionam estratégias de mercado capazes não somente de vender a bagulhada que produzem ou a que se vinculam direta ou indiretamente, como também de criar necessidades antes inexistentes, para que se comerciem ainda mais bagulhos, num processo interminável. Não custa nada lembrar um axioma conhecido em cibernética: "Informação é controle."
Grande parte dessa massa manipulada quer ser manipulada, porque expõe, sua vida a torto e a direito, em proporções que não parecem conhecer limite. Não é apenas na internet que se divulgam intimidades antes preservadas, é em qualquer lugar. Já ouvi casais tendo a famosa discussão da relação, em celulares que, no modo viva-voz, faziam com que os circunstantes escutassem tudo. E senhoras e senhorinhas entrevistadas discorrem a leitores ou espectadores sobre posições sexuais, preferências de parceiros, higiene pessoal ou depilação púbica e perianal, quando não tomam parte em mesas-redondas de depoimentos pessoais íntimos - o que antes era confissão hoje é papo casual.
Segredos antigos desaparecem, velhos mistérios não são mais arcanos, não há mais inocências a proteger. Para evitar a exposição ao que se exibe em toda parte, só recolhendo o bebê a um mosteiro trapista, logo após o desmame, aos 6 meses de idade. Não se pode censurar livros recomendados a crianças ou adolescentes, pelo motivo descabido de que mostram aspectos de um mundo vivido por todos, inclusive por eles, que veem bem mais do que os adultos suspeitam. Não há como esconder mais nada. E, dessa forma, é preciso que eles também tenham a chance de ver este mundo através da sensibilidade literária. Principalmente porque isso os ajudará a compreender que há escolhas.
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