Camone
VERISSIMO
O GLOBO - 29/07/10
Não deixa de ser irônico que o analista econômico mais à esquerda – se é que cabe o termo – da grande imprensa brasileira seja um americano. Paul Krugman é publicado no Brasil porque ganhou um Nobel e escreve bem, mas está na contramão do pensamento econômico dominante do seu país, que é a opinião dominante por aqui também. Critica o monetarismo clássico, os preceitos da escola de Chicago e os mitos do mercado autorregulador e ultimamente tem batido muito na opção da União Europeia de vencer sua crise atual com medidas de austeridade e cortes em gastos públicos – segundo ele um exemplo da velha prática perversa de fazer os pobres pagarem pelas lambanças dos ricos. Krugman defende a ação dos governos para estimular economias e desobediência a todas as receitas de autoflagelação vendidas aos pobres como “responsabilidade fiscal” e sacrifício depurador. Quer dizer, é um estranho em dois mundos, o dos economistas ortodoxos americanos que ainda ditam a política do país, mesmo no governo do Baraca, e o dos economistas locais que seguem a linha americana. Sem falar na estranheza de vê-lo publicado nos nossos principais jornais conservadores, no que também pode ser visto como uma admirável demonstração de pluralismo de enfoques.
Mas me lembrei de quando eu era guri e brincava de “mocinho”, ou caubói, com outros garotos da vizinhança, todos com reluzentes revólveres de espoleta metidos em seus coldres, até os sacarmos para matar bandidos ou índios. Eu tinha morado nos Estados Unidos e sabia inglês mas o máximo que os outros sabiam era enrolar a língua e fingir que falavam como nos filmes. Seu vocabulário era “Camone” e pouco mais, mas não importava. Nos comunicávamos naquele inglês imaginário, e vivíamos juntos a glória de ser americanos. Ninguém tinha a pontaria de um americano. Ninguém brigava a socos e saía da briga sem
uma marca no rosto como um americano.
Um americano era perfeito. Um americano podia tudo. Depois, claro, crescemos e descobrimos que nem todo americano era “mocinho”. Mas daquele tempo ficou a ideia inconsciente de que ser americano é credencial suficiente, de que basta dizer “camone” para dispensar qualquer outro tipo de aferição.
O que tudo isto tem a ver com o Paul Krugman? Talvez o fato de ser americano tenha facilitado sua entrada nas páginas econômicas sem que checassem suas convicções. Tudo teria a ver com a infância de todos nós.
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