Democracia reduzida
Merval Pereira
O Globo - 27/04/2010
O que menos importa neste momento é o que pensa ou diz o deputado Ciro Gomes. Sua opinião errática sobre as qualidades e defeitos da candidata oficial, Dilma Rousseff, e seus insuspeitos elogios à capacidade e competência do candidato tucano, José Serra, com as conhecidas críticas, podem criar fatos políticos de maior ou menor repercussão, podem influir momentânea ou definitivamente na decisão de eleitores, mas nada disso importa, a não ser para os que estão engajados partidariamente na disputa. Goste-se ou não da maneira como o deputado federal Ciro Gomes faz política, uma coisa é certa: sua desistência forçada à disputa da Presidência da República é um golpe na democracia.
A interferência frontal do presidente Lula para inviabilizar uma candidatura em benefício da que escolheu para suceder-lhe é uma agressão do ponto de vista democrático à livre escolha do eleitor.
Esses conchavos de gabinete que têm o objetivo de transformar em um plebiscito uma eleição em dois turnos, concebida justamente para dar ao candidato eleito a garantia de apoio da maioria do eleitorado, reduzem o sentido da eleição.
Um candidato vencer a eleição no primeiro turno, obtendo 50% mais um dos votos válidos, diante de uma série de candidatos que se apresentaram livremente ao eleitorado, dá ao resultado uma dimensão inequívoca da vontade majoritária do eleitor.
Foi o que aconteceu em 1994 e em 1998, quando Fernando Henrique Cardoso, o candidato da coligação PSDB-PFL, venceu no primeiro turno.
Na primeira vez, derrotou Lula, candidato por uma coligação de esquerda que unia o PT ao PSB, PPS, PCdoB, mais outros três candidatos de partidos importantes — Orestes Quércia pelo PMDB, Leonel Brizola pelo PDT e Esperidião Amim pelo PPR — e mais uma enxurrada de candidatos de pequenos partidos.
Na reeleição, derrotou novamente Lula e mais Ciro Gomes pelo PPS, Alfredo Sirkis pelo PV e outra série de pequenos partidos, entre os quais se destacava o Prona do Enéas.
Já as vitórias de Lula se deram no segundo turno, sempre contra os candidatos do PSDB, e ele recebeu o apoio de diversos partidos.
Em 2002, do PSB de Garotinho e do PPS de Ciro Gomes, e em 2006, se não oficialmente do partido, dos eleitores do PSOL de Heloisa Helena, e do PDT de Cristovam Buarque.
Havia certa lógica nas coligações, e os acordos políticos no segundo turno faziam sentido.
A ampliação da coalizão governamental no segundo mandato de Lula, numa montagem política que visava não a um projeto de governo, mas à manutenção de um projeto de poder com vistas à permanência de um grupo político no controle das ações por tempo indeterminado, reduzindo ao máximo a possibilidade de alternância no poder, transformou a sucessão presidencial em um jogo de bastidores que fez diversas vítimas até agora.
A primeira foi o próprio PT, que teve que engolir a candidatura de Dilma Rousseff.
Depois os partidos historicamente alinhados ao PT, que foram sendo postos de lado em benefício do PMDB.
Em vez de abrigar facções daquele partido, como tradicionalmente acontecia, o segundo governo Lula conseguiu unir o PMDB, dando a cada facção um punhado do Ministério.
A coalizão do governo Lula mostrou-se instável para levar adiante projetos políticos, mas a maioria que a compõe, partidos de corte tradicional, pragmático, clientelista, sem qualquer afinidade com o projeto político do PT, mostrou-se eficaz para impedir que o governo sofresse qualquer constrangimento das oposições.
Tudo em troca de pedaços autônomos de poder. É essa estranha montagem política que criou a mais heterogênea base parlamentar de um governo nos tempos recentes e lançou a candidatura oficial com uma propaganda eleitoral que terá, em teoria, o dobro do tempo da oposição.
E é ela também que impediu que o PSB lançasse uma candidatura alternativa à escolha oficial, na tentativa de levar o eleitor que gosta de Lula a uma escolha inevitável.
Não está dando certo até agora, o que não quer dizer que não dará.
Por enquanto a política está funcionando mais do que planejavam os arquitetos da escolha inevitável de uma criatura eleitoral tirada do bolso do colete do grande líder.
Um bom exemplo de como uma campanha eleitoral pode dar ao eleitor alternativas que não estão nos planos preconcebidos é a eleição da Inglaterra, onde o liberal Nick Clegg aparece como o azarão que pode forçar uma composição política nova que quebre a dicotomia Trabalhismo (Gordon Brown) x Conservadorismo ( David Cameron).
Entre nós, graças ao esforço inusitado do presidente Lula, muitas vezes passando por cima da legislação, apenas a senadora Marina Silva do PV surge como uma terceira via possível, e mesmo assim porque ela deixou o PT.
Independentemente do que se pense deste ou daquele candidato, usar o poder da Presidência da República para tentar impor ao eleitorado uma escolha plebiscitária que pressupõe que exista apenas um lado bom, é negar um processo virtuoso de evolução do país e reduzir o jogo democrático a uma pelada “nós contra eles”.
Estou em Córdoba, na Espanha, para acompanhar o seminário da Academia da Latinidade, que teve início ontem. A XXI Conferência continua o trabalho de mais de uma década na busca do diálogo entre o mundo islâmico e o Ocidente.
Discute-se aqui nos próximos dias a construção de um ambiente propício à reciprocidade internacional que supere distorções ideológicas e impeça o crescimento do terrorismo e de todas as formas de fundamentalismo.
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