Enquanto é tempo
Alon Feuerwerker
CORREIO BRAZILIENSE - 22/03/10
No cenário pacífico, democrático e plural, a liderança do Brasil é indisputável. No outro, não é. A Alemanha conseguiu em meio século de paz o que não obtivera em um século de grandes guerras: mandar na Europa. E Berlim não tem a bomba
As guerras são sempre produto de ações incrementais, um processo “químico”. Todos os reagentes são necessários. Se faltar unzinho que seja, não tem reação. É como acidente de avião. Um monte de coisa tem que dar errado junto. E de modo aparentemente imperceptível, antes do desastre.
Isso entretanto não elimina a necessidade de tentar identificar retrospectivamente, em cada processo, os primeiros passos. Quando no futuro a América Latina estiver em plena corrida nuclear será interessante analisar como ela começou.
Uns responsabilizarão a Venezuela, por recorrer à bomba como suposto meio de defesa contra os Estados Unidos. Outros culparão os Estados Unidos, pelas ameaças à soberania da Venezuela.
Outros olharão para o que fez o Brasil. Nós tínhamos duas opções: intervir decisivamente para demover nossos vizinhos ou pegar uma carona na instabilidade, para reavivar as brasas das nossas próprias ambições.
O Brasil está vocacionado para liderar a América do Sul, pelo peso geopolítico. Mas essa liderança não será exercida sem levar em conta a existência dos Estados Unidos, pelo peso geopolítico deles. Como conduzir a contradição?
O lógico seria cuidar preliminarmente da nossa soberania. É nosso principal ativo. Sem ela, o projeto de liderança vira fumaça. Todos os discursos incendiários de Sadam Hussein, bem como os vídeos e fotos dele empunhando armas, ou saudado pelas multidões, dormem num arquivo empoeirado e esquecido. Pois o Iraque deixou, na prática, de existir como nação independente.
Sadam está para o Iraque como Solano López esteve para o Paraguai. Se o objetivo era passar à História como heroi derrotado, mártir do império, tudo bem. Se era construir um grande país, deu errado.
Como defender melhor a soberania? Como calibrar as doses de confronto e cooperação com os Estados Unidos para o resultado final ser um Brasil mais forte? E não mais subordinado, ou isolado (no fim dá na mesma)? A nuclearização da América do Sul vai nos conduzir à hegemonia ou dará a Washington a legitimidade e o argumento necessários para construir um cordão sanitário?
Difícil acreditar que o Brasil vá deixar a Venezuela ter a bomba antes. E como reagirá a Colômbia a uma eventual bomba brasileira ou venezuelana? Neste caso ela vai ver a novidade como risco decisivo a sua soberania, dado o potencial desequilíbrio interno de forças em favor da guerrilha.
E a Argentina, com quem construímos lá atrás uma paz baseada precisamente na renúncia mútua a armas nucleares? Aceitará deixar o destino dela nas nossas mãos, sob o nome de fantasia de “Conselho de Defesa Sul-Americano”? Ou vai chamar gente de fora para a festa?
Os defensores do Brasil nuclearizado têm um argumento, recorrente. Os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque, mas não invadiram a Coreia do Norte.
É um lado da verdade. O outro? A bomba protege o establishment político norte-coreano, mas a República Democrática e Popular da Coreia é um país completamente isolado, desprovido de relações estáveis com os vizinhos e cada vez mais dependente do poderio chinês para contrabalançar as pressões de Washington.
As vantagens de uma América do Sul desnuclearizada são evidentes. Diminuem os motivos para a ingerência extracontinental. Fica mais tranquilo e natural construir um mercado comum. Continua aberto o caminho para a ampla cooperação coletiva. Elimina-se uma barreira à política comum de Defesa, o meio mais eficaz de garantir a soberania regional.
No cenário pacífico, democrático e plural, a liderança do Brasil é indisputável. No outro, não é. A Alemanha conseguiu em meio século de paz o que não obtivera em um século de grandes guerras: mandar na Europa. E Berlim não tem a bomba.
Os defensores do artefato brasileiro gostam de falar por códigos. Escondem-se atrás de comportamentos enigmáticos e sofismas. São os especialistas do “deixa comigo que eu sei o que estou fazendo”, ou do “vocês não têm moral para nos criticar”.
Seria bom se viessem a público defender suas posições abertamente.
Para que o país possa se defender delas a tempo
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