segunda-feira, março 22, 2010

ALCIONE ARAÚJO


A banalidade do mal
ESTADO DE MINAS 22/03/10

Foram dias de espanto, medo e raiva. Perdeu-se a calma, o sono e o apetite. Telefones zuniam na noite atrás de economistas, advogados, juízes

Era sexta-feira, que a tradição ocidental associa a martírio, e, se for dia 13, a mau agouro. Era dia 16, e ficou como de funesta memória. Na véspera, o país assistiu a posse do presidente que prometeu modernizá-lo e livrá-lo de corruptos e marajás. Mas, antes que o 16 findasse, uma bomba abalou a nação. Em cadeia nacional de rádio e TV, a Ministra da Economia Zélia Cardoso de Melo, o Secretário de Política Econômica Antonio Kandir e o Presidente do Banco Central Ibrahim Eris anunciaram novas regras financeiras do país: os três economistas do apocalipse confiscaram depósitos bancários acima de 50 mil cruzados, de pessoa física e jurídica, em conta-corrente, poupança e qualquer aplicação. Nenhum governante do mundo ousaria tanto. Na Alemanha, Argentina, Itália ou França seria guerra civil. Aqui, não havendo direito do cidadão, o Estado faz o que quer.

Foram dias de espanto, medo e raiva. Perdeu-se a calma, o sono e o apetite. Telefones zuniam na noite atrás de economistas, advogados, juízes. Tontos com a arbitrária violação do que se tinha por intocável, ninguém sabia se defender. A esperança e a doença entupiam igrejas e consultórios. Só uma pessoa falava da caixa de Pandora, a Ministra Zélia Cardoso de Melo, onipresente na TV com gélida máscara mortuária, explicava, num impávido tom professoral, que o confisco era necessário. Sem dinheiro, as pessoas não poderiam consumir e a inflação seria debelada. Nada disso tinha consistência – a poupança entrou na lista de confisco pouco antes do anúncio –, mais tarde, no Plano Real, viu-se que era indispensável criar uma moeda transitória, a URV. Os três economistas do apocalipse jogaram o país numa aventura irresponsável. Nenhum protesto público.

Nunca houve impacto igual na classe média. Guerra do Paraguai, Canudos, FEB na Itália, derrota na Copa de 50, suicídio de Vargas, golpe de 64, cassação de JK, Diretas Já e morte de Tancredo tiveram reações públicas, ruidosas, sentidas. A catarse coletiva alivia a dor. Mas o confiscado se sente atingido pessoalmente, é tomado da ira santa de lesado na vida privada. É o ressentimento surdo do cidadão traído, desrespeitado, punido sem culpa, sem lei que o proteja. Depois do Estado repressor militar, o Estado que cobra os maiores impostos do mundo em troca de pífios serviços públicos, e ainda lhe toma as economias de uma vida.

O confisco teve efeito devastador. Na segunda-feira, vi cenas duras nos bancos. A mulher arrancava os cabelos gritando pelo dinheiro da venda do único imóvel, sem ter onde morar. Outra, em prantos, exigia o dinheiro da cirurgia do marido. E xingavam, chutavam mesas, quebravam vidros, agrediam os gerentes. Surtos de hipertensão, falta de ar, desmaios, infartos.

O desespero cresceu e se alastrou, o drama virou tragédia: pessoas perdiam a vida, arruinados suicidavam-se. E pensar que o plano foi discutido e aprovado pelo Congresso Nacional! – muitos daqueles parlamentares seguem sendo eleitos e aprovando pacotes. O plano naufragou. Liberaram bloqueios, relaxaram controles, em dezembro a inflação bateu 20%. Empresas faliram, a economia se desorganizou. O país ficou à deriva.

Esta semana fez 20 anos daquela sexta-feira fatídica. O plano ainda é uma ferida aberta nos tribunais: 900 mil ações individuais e mil coletivas. Se vencerem, serão R$ 50,5 bilhões de indenizações – os bancos dizem que o sistema financeiro quebra. O Supremo Tribunal Federal decidirá quem pagará os restos da aventura.

Ninguém foi responsabilizado. Os três economistas do apocalipse são vitoriosos: Antonio Kandir dirige empresas; Ibrahim Eris opera investimentos, Zélia Cardoso de Melo é consultora financeira em Nova York, Fernando Collor é senador. Nunca foram tão felizes. Mais uma vez, a impunidade confirma a banalidade do mal.

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