Havana não é só de Fidel
O Estado de S.Paulo - 28/03/10
As "Damas de Branco" - umas poucas dezenas de mães e mulheres de prisioneiros de consciência deliberadamente espalhados por vários cárceres - são o mais recente índice de uma situação que evoca a queda do Muro de Berlim e o colapso de um certo "socialismo de caserna". Uma situação que, previsivelmente, ou evolui no sentido de algum tipo de transição para a democracia, assegurando aquilo que for razoável do impulso igualitário inicial da revolução, ou está condenada a apodrecer, arrastando a sociedade e o Estado cubano para o beco sem saída de um enrijecimento das atuais instituições totalitárias - o que seria, diga-se de passagem, só a antessala de uma restauração selvagem da economia de mercado.
"As ruas são de Fidel", é o que lhes gritavam, numa das recentes aparições das "Damas de Branco", manifestantes e agentes de segurança, de resto, em número muito superior ao daquelas mulheres. Fácil demais para esses agentes interromper o protesto pacífico em dias sucessivos, usando violência física e simbólica que, a esta altura, deveríamos considerar intolerável do próprio ponto de vista do socialismo.
Talvez tenha até passado o tempo de replicar de modo inequívoco, ainda que sem nenhuma vontade de provocação ou de "épater le proletaire": as ruas de Havana pertencem a todo o povo cubano, sem exceção, inclusive à diáspora. Ruas e praças pertencem tanto aos apoiadores quanto aos oposicionistas do regime, e todos fariam muito bem em se preparar o quanto antes para a convivência segundo os princípios da dialética democrática, que, mesmo sendo dura e conflituosa, em princípio não exclui ninguém.
O tratamento da questão cubana supõe, da parte das nossas esquerdas, um rigoroso autoexame, que muitos ainda se mostram obstinadamente incapazes de fazer. Não raramente, adotam-se procedimentos que equivalem a contornar o problema ou lhe dar um perfil fantasioso. De nada adianta agitar o espantalho do imperialismo, álibi já envelhecido. Pode-se muito bem ser contra o histórico de intervenções dos Estados Unidos na América Central e, particularmente, o anacrônico bloqueio a Cuba, e, mesmo assim, denunciar um igualmente envelhecido padrão socialista de matriz stalinista. Um padrão que, em última análise, é o responsável pela contínua negação dos direitos civis e políticos, tal como, aliás, ocorria no "socialismo real".
Guantánamo e seu papel na "guerra" americana contra o terror são indefensáveis. Mereceram, e merecem, o repúdio de todos os democratas, nisso respaldados por instituições conhecidas e admiradas pelos brasileiros desde o tempo dos nossos anos de chumbo. É o caso, por exemplo, da Anistia Internacional ou da Human Rights Watch, que, entre outras, são os olhos e ouvidos de uma novíssima "sociedade civil internacional", atenta ao desrespeito dos mais básicos direitos, onde quer que esse desrespeito se manifeste - inclusive nas celas improvisadas de Guantánamo, para mencionar uma situação frequentemente agitada por quem procura pretexto para desculpar a longeva ditadura de Fidel e Raúl Castro.
O certo é que parte considerável da esquerda brasileira resiste a uma abordagem mais contemporânea da questão cubana. Cabe perguntar por que isso acontece, para além dos laços afetivos que prendem essa mesma esquerda às vicissitudes do socialismo - dessa forma primitiva de socialismo - na ilha.
Uma primeira constatação diz respeito à insistência em manter o paradigma da "revolução" - um evento mítico, explosivo, que traria a regeneração social de alto a baixo e, por definição, requer formas extremadas de poder -, desprezando ou mesmo recusando o paradigma da "democracia", o único no qual uma esquerda moderna se pode mover, por assegurar estavelmente a presença dos "de baixo" nos processos de democratização.
Mas não só disso se trata. Existem laços afetivos, existe a recusa a aderir ao paradigma da democracia, mas também podemos ir adiante. Considerando a acidentada história do socialismo no século 20, a partir de um certo momento, em meados dos anos 1950, abriu-se a possibilidade da superação do stalinismo: das suas categorias, do seu lodo de fazer política, do tipo de Estado que havia gerado.
Começou-se a falar de uma "via pacífica" para o socialismo - o que, apesar de recuos e contradições, parecia inaugurar um modo novo de pensar a mudança social. Salvador Allende, no Chile, também desbravava um caminho inédito, tragicamente interrompido em 11 de setembro de 1973. E nesse panorama, que sugeria o desbloqueio de velhos hábitos, Cuba repropunha a luta armada, tratada como "forma superior" de luta, incendiando - romanticamente - parcela da juventude politizada.
Não tinha nada de "universal" aquela revolução. Adotar seus procedimentos e até seus símbolos, como se fez generalizadamente, não constituiu só um erro de oportunidade, uma avaliação tática equivocada: constituiu um erro de princípio. O método era equivocado e previsivelmente desembocaria em outro tipo de autoritarismo. Em vez de ser uma "revolução na revolução", o exemplo cubano e as tentativas da sua exportação contribuíram para impedir o aggiornamento da esquerda, de que tanto nos ressentimos ainda hoje.
Por isso, para muitos, distanciar-se do mito cubano é também distanciar-se do próprio passado, romper com dogmas quase religiosos, abandonar a pequena navegação de cabotagem e lançar-se - teórica e politicamente - em mar aberto. Criticar a situação a que Cuba se reduziu é dispor-se a um doloroso processo de autorrenovação que nos afaste da vocação ditatorial de certos socialismos, mesmo os que, hoje, se querem "do século 21". Uma tarefa que não é fácil. Sem realizá-la, porém, testemunharemos a emergência de um falso "novo", contaminado patologicamente por aquilo que não tem mais razão de existir.
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