Os maus conselhos que as pesquisas dão
O Estado de S.Paulo - 31/03/10
A escolha eleitoral é o ápice de participação do cidadão no Estado Democrático de Direito, mas o funcionamento deste não deve nem pode depender apenas dela. Para começo de conversa, é preciso garantir a lisura dos pleitos, sob pena de a democracia ser traída e frustrada em sua raiz. É fundamental, pois, que alguns requisitos preliminares, como a garantia da igualdade de oportunidades de quem disputa, o sigilo do sufrágio e a lisura na apuração do resultado das urnas, funcionem acima dos interesses de grupos, partidos e, principalmente, governos. Isso é capital em quaisquer casos e mais ainda no nosso, pois aqui vige um regime no qual, na prática, a ação da cidadania se restringe à manifestação do voto. De vez que ainda são precários os instrumentos participativos rotineiros em democracias maduras, tais como a americana e a britânica, as duas mais longevas e sólidas do planeta. Aqui, por exemplo, não há um equilíbrio tão grande entre os Poderes republicanos e isso dificulta a eficácia dos tais checks and balances (freios e contrapesos) postos a funcionar pelos Pais Fundadores da Revolução Americana.
Diante dessa constatação, convém guardar alguns cuidados quanto à utilização sem critério das pesquisas de opinião pública sobre a preferência do eleitor em relação às opções que lhe são apresentadas nas disputas por cargos e mandatos no Executivo. Essas pesquisas são um importante instrumento de informação dos cidadãos sobre as tendências de alguma eleição, mas podem também vir a representar um perigoso meio de distorcer a verdadeira natureza do confronto entre plataformas e ideias dos candidatos.
Um episódio em evidência neste instante demonstra com clareza a necessidade de proteger a higidez das instituições democráticas e o funcionamento adequado da máquina pública da influência negativa que os índices de popularidade ou desprestígio podem provocar. Contra tudo o que demonstra a experiência histórica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima do último meio ano de seu segundo governo tendo batido um recorde inimaginável de popularidade de 76% (segundo o Instituto Datafolha). Não é o caso de discutir seus méritos para tanto e tampouco de procurar as razões desse fenômeno. O caso aqui é flagrar o efeito maléfico que isso está provocando na postura do chefe de governo na gestão dos negócios públicos.
Gozando de prestígio popular nunca antes usufruído na História deste país, noço impermeável guia dos povos da floresta tropical, do cerrado e da periferia urbana age como se fosse sócio de Deus e imune a reparos, até mesmo quando os próprios enganos são devidamente comprovados. Nem ao papa, nestes tempos de contestação da autoridade religiosa, é atribuída a premissa da infalibilidade absoluta que Lula quer ter. Sua reação à decisão da Justiça Eleitoral de repreendê-lo pela óbvia violação da igualdade de oportunidades por sua candidata, lançada em campanha não iniciada, é uma evidência de seu menosprezo à definição clássica de que a democracia é o império da lei. A letra fria da norma tem de prevalecer sobre emoções e ambições de qualquer um, a dele também.
As multas aplicadas para sancionar suas faltas, primeiro, de R$ 5 mil e, depois, de R$ 10 mil, são ínfimas, se comparadas com a fortuna que o Partido dos Trabalhadores (PT) se dispõe a gastar para levar Dilma Rousseff a subir a rampa do Planalto. Mas têm o valor simbólico de mostrar à Nação que o chefe de governo não pode tudo e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se esforça para assegurar uma disputa limpa, sem abuso de poder econômico de nenhuma parte. O presidente recorreu contra a decisão e mofou dela em público. Entre a primeira e a segunda, provocou a gargalhada dos áulicos que o aplaudem nos ambientes controlados por seus fiéis prosélitos ao lamentar que não possa citar o nome de ninguém para não ser multado. E, depois da reincidência flagrada, perguntou a outros devotos fãs quem dentre eles se disporia a pagar a sanção em seu lugar. Houve até quem lembrasse que o presidente se acostumou mal quando seu amigo Paulo Okamoto, então tesoureiro do PT, pagou, no lugar dele, outra multa dessas. O garante da manutenção da ordem constitucional violar a lei é falta grave. Debochar da Justiça montado em índices de popularidade, um acinte imperdoável.
Se o sucesso turva o bom senso de Lula, o pavor do fiasco leva o PSDB a cometer, a pretexto das pesquisas, outro erro crasso. Ao responder "esquece Fernando Henrique" à pergunta de repórter da Folha de S.Paulo sobre a ausência do ex-presidente entre os oradores da convenção em que os tucanos ungirão o governador de São Paulo, José Serra, seu candidato ao posto de Lula, o presidente nacional do partido, Sérgio Guerra, cometeu uma grosseria, uma ingratidão e uma estupidez, de uma vez.
Sua vítima entrou na História do Brasil ao pilotar o Plano Real, que dizimou a inflação, o rato que roía a roupa e o prato do povo pobre, e este, grato por isso, o elegeu duas vezes para o poder máximo no País. A recente impopularidade do ex-presidente nas pesquisas que chegam ao conhecimento da cúpula tucana em nada muda isso nem o fato inquestionável de que a privatização que ele realizou inseriu a população carente no universo de consumo nunca antes sequer ambicionado por ela. O ofuscante prestígio eleitoral de seu sucessor o afastou do topo da preferência popular, mas não elimina o fato histórico de que foi em sua gestão que se plantaram as bases sobre as quais Lula construiu sua obra aplaudida e de êxito indiscutível. Cabe ao PSDB resgatar a História, mostrando ao eleitor a relação de causa e efeito entre a herança bendita que Lula administrou bem e a paz gozada pelo brasileiro, hoje capacitado a planejar seu orçamento doméstico sem temer o fantasma dos índices inflacionários. Ao ocultar a própria história, o alto tucanato comete suicídio estulto, pois é estúpido imaginar que um eleitor vote em Dilma só porque Fernando Henrique apoia Serra.
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