terça-feira, novembro 17, 2009

BENJAMIN STEINBRUCH

Civilidade


Folha de S. Paulo - 17/11/2009



Foi possível encontrar ao menos um aspecto positivo em meio ao transtorno coletivo do blecaute: civilidade

O BLECAUTE da semana passada foi um transtorno para quase 70 milhões de brasileiros. A falta de energia elétrica parou trens e metrôs nas grandes cidades e impôs sacrifícios a pessoas que, tarde da noite, saíam do trabalho ou da escola. Alguns, em São Paulo e no Rio, tiveram de passar a noite na rua, até que fossem restabelecidos o fornecimento de energia e o transporte público. Hospitais sem fontes próprias de geração passaram momentos difíceis para cuidar de seus pacientes.
Tudo isso foi corretamente mostrado pela mídia. Mas o episódio do apagão também chamou a atenção por algo que não aconteceu. Tirando alguns casos isolados, não houve vandalismo, depredações ou assaltos, coisas que normalmente ocorrem quando metrópoles ficam às escuras.
Um amigo de longa data foi quem chamou minha atenção para esse aspecto. Ele jantava em um restaurante em São Paulo quando acabou a luz, às 22h13. Por temer confusões no trânsito com semáforos apagados, prolongou o jantar até perto da meia-noite. Mas decidiu ir para casa quando descobriu, usando o celular, que metade do país estava às escuras e não havia previsões de volta da luz.
O que ele viu nas ruas foi algo incomum. Em vez da costumeira agressividade dos motoristas, notou que o paulistano estava generoso, cedia espaço para os carros que tentavam atravessar avenidas e circulava em velocidade moderada. Não houve, por conta dessa surpreendente magnanimidade, o caos no trânsito nem o número de acidentes que se poderia esperar em um momento como aquele. Na madrugada, aconteceu em São Paulo apenas um acidente, sem vítima, e três atropelamentos.
Nenhum ônibus foi incendiado, e nenhum trem, depredado. No momento em que as composições pararam por falta de energia, havia pelo menos 130 mil passageiros sendo transportados nos vagões do metrô e de linhas suburbanas. Lentamente, sem conflitos e à luz de velas, São Paulo foi dormir.
Nem sempre foi assim. No grande blecaute de 1999, muitas pessoas foram assaltadas em São Paulo e em outras cidades e a polícia teve de fazer um feroz combate aos arrastões durante a noite. Em outras interrupções de energia, sempre aumentam as ocorrências policiais. No blecaute da última terça-feira, que durou até seis horas em alguns bairros de São Paulo, o número de ocorrências foi 10% inferior ao de um dia normal.
Os mais velhos certamente se lembram também do blecaute de 1977, em Nova York, quando a cidade teve a tristemente famosa "noite de terror", assim batizada pela imprensa americana em razão da onda de vandalismo e violência que se espalhou pela cidade. Quando o dia amanheceu, havia 1.037 focos de incêndios, 1.600 lojas danificadas, 3.800 pessoas presas e 500 policiais feridos. De uma única loja de veículos, vândalos levaram 50 carros novos.
A forma como os brasileiros enfrentaram o blecaute é algo a ser comemorado. Tanto quanto criticar comportamentos inadequados, é necessário ressaltar condutas bem-educadas, ainda que elas sejam uma obrigação dos cidadãos em geral.
Blecautes são naturalmente traumáticos e expõem a enorme dependência que os humanos têm hoje da energia elétrica. Sem ela, não é mais possível trabalhar, produzir, estudar ou se divertir. Dessa vez, pelo menos, foi possível encontrar um aspecto positivo em meio ao transtorno coletivo: civilidade. Falta agora o governo apurar e divulgar as verdadeiras causas do problema, com a mesma correção e tranquilidade que os cidadãos enfrentaram a escuridão.

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