sábado, outubro 10, 2009

RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA
As madames e suas mucamas
Das brasileiras que trabalham, 16% são domésticas – e menos de 25% têm carteira assinada
RUTH DE AQUINO
Revista Época
RUTH DE AQUINO
é diretora da sucursal de ÉPOCA no Rio de Janeiro
raquino@edglobo.com.br

A gente pensa que sabe. Mas os números teimam em nos surpreender. Qual é a maior ocupação profissional da mulher no Brasil? Doméstica. Também espanta saber que menos de 25% das domésticas têm carteira assinada. Não há nenhum direito trabalhista ou benefício para quase 5,5 milhões de empregadas em casas de família, embora seja ilegal. Seus patrões serão os mesmos que se indignam com a falta de ética dos políticos?

De todas as brasileiras que trabalham, 15,8% são domésticas. Nos países desenvolvidos, essa profissão – do jeito como a conhecemos, a “criada para todo tipo de serviço”, que cozinha, limpa, passa e lava em tempo integral – acabou há muito tempo. Mas, no Brasil, nos últimos dez anos, as domésticas aumentaram de 5 milhões para 6,6 milhões. E três quartos desse total são invisíveis em nossa economia.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) acaba de divulgar esses dados, com base em pesquisa de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A escolaridade das empregadas é muito baixa. A média não chega a seis anos de estudos. Piora no interior. Se, no Sudeste, temos 5,8% de analfabetos, no Nordeste são 19,4%. Nas áreas urbanas, há 4,3% de analfabetos. Nas áreas rurais, o índice é assustador: 23,5%.

Não sou fã de estatísticas e porcentagens. Elas normalmente não têm cara nem coração. Mas essas pesquisas radiografam a alma nacional.

As madames e seus maridos já tentaram saber até que ano suas empregadas estudaram? Sabem onde moram? Quanto tempo levam para chegar, a que horas acordam para trabalhar? Ou importa apenas se o feijão está bem temperado e se a carne assada passou do ponto?

Das brasileiras que trabalham, 16% são domésticas –
e menos de 25% têm carteira assinada

“Lamento, mas quem consegue pagar um salário mínimo e mais todos os encargos?”, argumentam, em sua defesa, patrões relapsos. Se não conseguem, então fiquem sem empregada. Deveria ser simples. Mas, no Brasil, as classes média e alta são exigentes. Nos países desenvolvidos do Hemisfério Norte, “doméstica” não existe. O luxo máximo costuma ser a diarista uma vez por semana – a cerca de R$ 40 por hora.

As diaristas na Europa e nos Estados Unidos são imigrantes, muitas delas clandestinas. Quem faz faxina ou cuida das crianças dos outros são as latino-americanas, as africanas, as asiáticas, ou as europeias do Leste, romenas, russas, polonesas. Nunca as nativas.

Essa mordomia no Brasil, com origem na tradição escravagista, é alimentada pela profunda disparidade de renda. O trabalho manual não é reconhecido como deveria. Quem vive fora aprende a valorizar o privilégio de dispor de alguém que ajude nas tarefas de casa. Paga mais, trata melhor.

“Na Itália, políticas públicas adotadas há 20 anos mudaram tanto a condição das domésticas que o nome passou a ser outro. Viraram ‘colaboradoras familiares’ para acabar com a conotação pejorativa”, diz o economista André Urani, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). “Não existem nos países do Norte essas senzalinhas domésticas que encontramos no Brasil, com quartos de empregada que são uma vergonha em condomínios luxuosos.”

Domésticas de uniforme e touca servindo cafezinhos, almoço e jantar ainda são muito comuns em casas afluentes em nosso país. “Não basta mudar a lei para mudar o comportamento”, diz Urani. “O brasileiro médio não está preparado para viver sem empregada e cuidar ele mesmo da casa. Não é educado assim. Nossa sociedade mantém a cisão entre a classe média e o resto do povo. Exceto na praia ou no Carnaval, não há contato nem integração com pessoas de baixa renda.”

É verdade que muitas empregadas não querem ter carteira assinada para evitar o desconto do INSS. Elas alegam ganhar mais na informalidade, fazendo bicos. Mas, atenção, patrões: isso é ilegal.

A empregada “libera” a patroa para trabalhar fora. No caso de uma minoria muito rica, a doméstica permite que a madame viva sua rotina de massagens, salões de beleza, ginásticas, chás e shoppings. Na raiz desse estilo de vida bem tropical, está algo pernicioso, que corrói as relações humanas e sociais. Chama-se subdesenvolvimento.

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